domingo, 16 de outubro de 2011

Militante do PCdoB acusa Orlando Silva de montar esquema de corrupção

VEJA, 16 de outubro de 2011


Segundo o policial militar
João Dias Ferreira, ministro
do Esporte recebeu propina nas
dependências do ministério

No ano passado, a polícia de Brasília prendeu cinco pessoas acusadas de desviar dinheiro de um programa criado pelo governo federal para incentivar crianças carentes a praticar atividades esportivas. O grupo era acusado de receber recursos do Ministério do Esporte através de organizações não governamentais (ONGs) e embolsar parte do dinheiro. Chamava atenção o fato de um dos principais envolvidos ser militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ex-candidato a deputado e amigo de pessoas influentes e muito próximas a Orlando Silva, o ministro do Esporte. Parecia um acontecimento isolado, uma coincidência. Desde então, casos semelhantes pipocaram em vários estados, quase sempre tendo figuras do PCdoB como protagonistas das irregularidades. Agora, surgem evidências mais sólidas daquilo que os investigadores sempre desconfiaram: funcionava dentro do Ministério do Esporte uma estrutura organizada pelo partido para desviar dinheiro público usando ONGs amigas como fachada. E o mais surpreendente: o ministro Orlando Silva é apontado como mentor e beneficiário do esquema.

Em entrevista a VEJA, o policial militar João Dias Ferreira, um dos militantes presos no ano passado, revela detalhes de como funciona a engrenagem que, calcula-se, pode ter desviado mais de 40 milhões de reais nos últimos oito anos. Dinheiro de impostos dos brasileiros que deveria ser usado para comprar material esportivo e alimentar crianças carentes, mas que acabou no bolso de alguns figurões e no caixa eleitoral do PCdoB. O relato do policial impressiona pela maneira rudimentar como o esquema funcionava. As ONGs, segundo ele, só recebiam os recursos mediante o pagamento de uma taxa previamente negociada que podia chegar a 20% do valor dos convênios. O partido indicava desde os fornecedores até pessoas encarregadas de arrumar notas fiscais frias para justificar despesas fictícias. O militar conta que Orlando Silva chegou a receber, pessoalmente, dentro da garagem do Ministério do Esporte, remessas de dinheiro vivo provenientes da quadrilha: “Por um dos operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia o dinheiro na garagem” (veja a entrevista na edição de VEJA desta semana). João Dias dá o nome da pessoa que fez a entrega. Parte desse dinheiro foi usada para pagar despesas da campanha presidencial de 2006.

O programa Segundo Tempo é repleto de boas intenções. Porém, há pelo menos três anos o Ministério Público, a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União desconfiam de que exista muita coisa além da ajuda às criancinhas. Uma das investigações mais completas sobre as fraudes se deu em Brasília. A capital, embora detentora de excelentes indicadores sociais, foi muito bem aquinhoada com recursos do Segundo Tempo, especialmente quando o responsável pelo programa era um político da cidade, o então ministro do Esporte Agnelo Queiroz, hoje governador do Distrito Federal. Coincidência? A investigação mostrou que não. A polícia descobriu que o dinheiro repassado para entidades de Brasília seguia para entidades amigas do próprio Agnelo, que por meio de notas fiscais frias apenas fingiam gastar a verba com crianças carentes. Agnelo, pessoalmente, foi acusado de receber dinheiro público desviado por uma ONG parceira. O soldado João Dias, amigo e aliado político de Agnelo, controlava duas delas, que receberam 3 milhões de reais, dos quais dois terços teriam desaparecido, de acordo com o inquérito. Na ocasião, integrantes confessos do esquema concordaram em falar à polícia. Contaram em detalhes como funcionava a engrenagem. O soldado João Dias, porém, manteve-se em silêncio sepulcral — até agora.

Na entrevista, o policial afirma que, na gestão de Agnelo Queiroz no ministério, o Segundo Tempo já funcionava como fonte do caixa dois do PCdoB — e que o gerente do esquema era o atual ministro Orlando Silva, então secretário executivo da pasta. Por nota, a assessoria do governador Agnelo disse que as relações entre ele e João Dias se limitaram à convivência partidária, que nem sequer existe mais. VEJA entrevistou também o homem que o policial aponta como o encarregado de entregar dinheiro ao ministro. Trata-se de Célio Soares Pereira, 30 anos, que era uma espécie de faz-tudo, de motorista a mensageiro, do grupo que controlava a arrecadação paralela entre as ONGs agraciadas com os convênios do Segundo Tempo. “Eu dirigia e, quase todo mês, visitava as entidades para fazer as cobranças”, contou. Casado, pai de seis filhos, curso superior de direito inconcluso, Célio trabalha atualmente como gerente de uma das unidades da rede de academias de ginástica que o soldado João Dias possui. Célio afirma que, além do episódio em que entregou dinheiro ao próprio Orlando Silva, esteve pelo menos outras quatro vezes na garagem do ministério para levar dinheiro. “Nessas vezes, o dinheiro foi entregue a outras pessoas. Uma delas era o motorista do ministro”, disse a VEJA. O relato mais impressionante é de uma cena do fim de 2008. “Eu recolhi o dinheiro com representantes de quatro entidades aqui do Distrito Federal que recebiam verba do Segundo Tempo e entreguei ao ministro, dentro da garagem, numa caixa de papelão. Eram maços de notas de 50 e 100 reais”, conta.

Célio afirma que um dirigente do PCdoB, Fredo Ebling, era encarregado de indicar a quem, quando e onde entregar dinheiro. “Ele costumava ir junto nas entregas. No dia em que levei o dinheiro para o ministro, ele não pôde ir. Me ligou e disse que era para eu estar às 4 e meia da tarde no subsolo do ministério e que uma pessoa estaria lá esperando. O ministro estava sentado no banco de trás do carro oficial. Ele abriu o vidro e me cumprimentou. O motorista dele foi quem pegou a caixa com o dinheiro e colocou no porta-malas do carro”, afirma. Funcionário de carreira do Congresso Nacional, chefe de gabinete da liderança do partido na Câmara dos Deputados, Fredo Ebling é um quadro histórico entre os camaradas comunistas. Integrante da Secretaria de Relações Internacionais do PCdoB nacional, ele foi candidato a senador e a deputado por Brasília. Em 2006, conseguiu um lugar entre os primeiros suplentes e, no final da legislatura passada, chegou a assumir por vinte dias o cargo de deputado federal. João Dias diz que Fredo Ebling era um dos camaradas destacados por Orlando Silva para coordenar a arrecadação entre as entidades. O policial relata um encontro em que Ebling abriu o bagageiro de seu Renault Mégane e lhe mostrou várias pilhas de dinheiro. “Ele disse que ia levar para o ministro”, afirma. Ebling nega. “Eu não tinha esse papel”, diz. O ex-deputado diz que conhece João Dias, mas não se lembra de Célio.

A lua de mel do policial com o ministério e a cúpula comunista começou a acabar em 2008, quando passaram a surgir denúncias de irregularidades no Segundo Tempo. Ele afirma que o ministério, emparedado pelas suspeitas, o deixou ao léu. “Eu tinha servido aos interesses deles e de repente, quando se viram em situação complicada, resolveram me abandonar. Tinham me prometido que não ia ter nenhum problema com as prestações de contas.” O policial diz que chegou a ir fardado ao ministério, mais de uma vez, para cobrar uma solução, sob pena de contar tudo. No auge da confusão, ele se reuniu com o próprio Orlando Silva. “O Orlando me prometeu que ia dar um jeito de solucionar e que tudo ia ficar bem”, diz. O ministro, por meio de nota, confirma ter se encontrado com o policial. Diz que o recebeu em audiência, mas nega que soubesse dos desvios ou de cobrança de propina. “É uma imputação falsa, descabida e despropositada. Acionarei judicialmente os caluniadores”, afirmou o ministro, em nota.

Em paralelo às investigações oficiais, João Dias respondeu por desvio de conduta na corporação militar. A Polícia Militar de Brasília oficiou ao ministério em busca de informações sobre os convênios. A resposta não foi nada boa para o soldado: dizia que ele estava devendo 2 milhões aos cofres públicos por irregularidades nas prestações de contas. João Dias então subiu o tom das ameaças. Em abril de 2008, quando foi chamado à PM para dar satisfações e tomou conhecimento do ofício, ele procurou pessoalmente o então secretário nacional de Esporte Educacional, Júlio Cesar Filgueira, para tirar satisfação. O encontro foi na secretaria. O próprio João Dias conta o que aconteceu: “Eu fui lá armado e dei umas pancadas nele. Dei várias coronhadas e ainda virei a mesa em cima dele. Eles me traíram”. Júlio Filgueira, também filiado ao PCdoB de Orlando Silva, era responsável por tocar o programa. A pressão deu certo: o ministério expediu um novo ofício à Polícia Militar amenizando a situação de Dias. O documento pedia que fosse desconsiderado o relatório anterior. A agressão que João Dias diz ter cometido dentro da repartição pública passou em branco. “Eles não tiveram coragem de registrar queixa porque ia expor o esquema”, diz o soldado. Indagado por VEJA, o gabinete de Orlando Silva respondeu que “não há registro de qualquer agressão nas dependências do Ministério do Esporte envolvendo estas pessoas”. O ex-secretário Júlio Filgueira, que deixou o cargo pouco depois da confusão, confirma ter recebido o policial mas nega que tenha sido agredido. “Ele estava visivelmente irritado, mas essa parte da agressão não existiu”, diz. A polícia e o Ministério Público têm uma excelente oportunidade para esclarecer o que se passava no terceiro tempo no Ministério do Esporte. As testemunhas, como se viu, estão prontas para entrar em campo.

Ministro Orlando Silva rebate acusação e se diz 'perplexo'

VEJA, 16 de outubro de 2011


Segundo policial militar, ministro do
Esporte recebeu propina no ministério

O ministro do Esporte, Orlando Silva, rebateu as acusações de foi o mentor e beneficiário de um esquema de desvio de dinheiro do programa Segundo Tempo. Na edição que chega neste sábado às bancas, a revista VEJA traz uma entrevista com o policial João Dias Ferreira, um militante do PC do B que também é dono de uma ONG que sumiu com 2 milhões de reais que deveriam ter sido usados na compra material esportivo e alimentos para crianças carentes.

De Guadalajara, no México, onde participou da cerimônia de abertura dos Jogos Panamericanos, Orlando Silva se disse chocado com a denúncia e classificou o denunciante como “bandido”. O ministro afirmou que tinha conhecimento de que o policial ameaçara fazer denúncias públicas envolvendo sua pasta e admitiu ter recebido João Dias no ministério, a pedido de seu antecessor na pasta e atual governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz.

“Confesso que eu estou chocado”, disse. “Estou estupefato, perplexo. Um bandido fala e eu que tenho que provar que não fiz, meu Deus?”, afirmou o comunista, informando que vai processar o policial.

O ministro disse que sabia das ameaças do policial há algum tempo. “Durante um ano esse sujeito procurou gente do ministério e fez ameaça, insinuação. E qual foi a nossa posição? Amigo, denuncie, fale o que você quiser. Por quê? Porque como nós temos convicção de que o que foi feito foi o correto, nós não tememos. E falávamos para ele: não nos interessa. Ele falava que existia um dossiê, que ia denunciar... A resposta era: faça, procure o Ministério Público, a polícia, a justiça, faça o que você quiser fazer”, afirmou.

Indagado sobre a razão pela qual o ministério não comunicou as ameaças à polícia, o ministro disse que “imaginou” que um de seus subordinados pudesse ter levado o assunto às autoridades competentes. “Chegamos a falar sobre essa hipótese.”

O ministério não registrou queixa das ameaças nem da agressão física que o próprio policial diz ter cometido contra Júlio Filgueira, ex-secretário nacional de Esporte Educacional do ministério. João Dias disse ter dado socos e coronhadas em Filgueira, nas dependências da secretaria.

Sobre o encontro que teve com o soldado, Orlando Silva explicou: “Estive com ele uma única vez, quando o Agnelo recomendou que eu recebesse ele, que era presidente de uma federação esportiva em Brasília e ele propôs fazer a tal parceria com o programa Segundo Tempo. Foi no gabinete, em audiência. Não foi num lugar escuso, sombrio. E quando ele não cumpriu aquilo que estava determinado, eu assinei a Tomada de Contas Especial, eu mandei para o Tribunal de Contas apurar”, declarou.

Orlando Silva desafiou o policial a provar o que diz e sugeriu que o militar, seu colega de partido, enriqueceu às custas de corrupção. “Vale a pena olhar qual é a minha declaração de renda, qual é meu patrimônio, qual é minha conta bancária e qual é a dele”. Por fim, emendou, enigmático: “Qual é a (conta) dele e de outras pessoas que têm relação (com o soldado)”.

Apesar de sua assessoria ter sido procurada na quinta-feira por VEJA, só após o fechamento da revista, na noite de sexta-feira, é que Orlando Silva fez contato com a reportagem. Antes, seus assessores haviam pedido que as perguntas fossem encaminhadas por escrito.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Discurso de boas vindas feito pelo acadêmico Eduardo Portella para Merval Pereira na ABL

"A Academia Brasileira de Letras, pela decisão soberana dos seus integrantes, recebe hoje Merval Pereira. Acolhe o jornalista, o escritor, o publicista.
O jornalista é hoje, mais do que nunca, se me permitir o idioma midiático, o escritor em tempo real.

O escritor nele, surgido nos dias matinais do narrador ficcionista, foi tomado pela voracidade do tempo do jornal. Ficou, não se sabe até quando, aquela saudade latente da literatura. A prosa transparente e equilibrada, mesmo hoje, não consegue esconder esse incontido objeto de desejo.

Já o publicista é antes o jornalista que se acompanha visceralmente de ideias, e leva adiante uma linhagem muito grata a esta Casa de Machado de Assis, e que remonta a João Francisco Lisboa, fundador do Jornal de Timon, patrono da cadeira 18, e depositário autorizado da consciência crítica da época. Torna-se fácil identificar no publicista o traço literário individualizador. O publicista nada tem a ver com o publicitário, esse extrovertido personagem dos nossos dias.

O jornalista é aquele que se debruça cotidianamente, infatigavelmente, sobre a notícia da hora, limitado pelo instável serviço de meteorologia da vida política. Não é esporte para ser praticado por amadores, por melhores que sejam as condições físicas do suposto atleta. A sua condição de escritor em regime de urgência aumenta ainda mais os seus desafios. Esse trabalho é uma atividade arriscada, e não raro, temerária. O seu horizonte corta a linha movediça do efêmero. A aposta maior consiste em contribuir com algo mais, que o habilite a transpor a fugacidade da manchete, a revitalizar a permanência do instante. Tudo com a necessária rapidez, mas sem perder de vista o olhar da história. Nunca a escravização à ocorrência, porém o fato e o horizonte do fato. Ou seja, o feito do fato.

A corrida de obstáculos da democracia de massas é produtora de ruídos e armadilhas imprevisíveis. Mas a imprensa, falada, escrita e televisionada tem resistido a essas perturbações incessantes. Continua sendo a tribuna, insubmissa, enérgica, demarcada hoje nos tempos nublados da derradeira modernidade, que de há muito prefiro chamar de baixa modernidade. Quem tiver alguma dúvida, leia ou escute a palavra elucidativa de Merval Pereira.

Ela e ele são protagonistas veementes dessa narrativa democrática, justamente agora, quando a indiferença e a agonia começam a anunciar a pós-democracia. A imprensa independente tem conseguido barrar a corrida frenética do "hiperpresidencialismo", do parlamentarismo desidratado, e dos aparelhos ideológicos de Estado. A tripartição dos poderes, que foi um dia o sonho republicano, não se encontra menos abalada.

Merval Pereira pratica o jornalismo de qualidade. Atravessa a fronteira, ainda persistente, entre a sociedade da informação e a sociedade do conhecimento, reconhecendo ser fundamental evitar que se choque a expansão virtual da mídia eletrônica com o que fora sua base virtuosa. Esse jornalismo nunca deixou de instaurar o saber propedêutico dos homens, das coisas, do viver do mundo. E Merval Pereira não se cansa de predicar pela relevância da informação, pelo "papel educativo", pela "função social" da imprensa. E também não deixa de rejubilar-se diante de ações, como é o caso do combate à corrupção, onde "a sociedade e a imprensa ? são palavras suas ? estiveram muito próximas uma da outra". Muito menos transige com o esfacelamento dos partidos políticos.

Merval Pereira se preparou pacientemente, aqui e no exterior, para sua opção profissional. Trabalhou em diferentes órgãos da imprensa, e escolheu O Globo como a sua morada preferida. Aí escalou todos os degraus, até chegar e se dedicar ao jornalismo de opinião.

Descende de uma linhagem de político e de educadora. Porque já houve época, neste país tão exilado de si mesmo, na qual educadores e políticos caminhavam lado a lado.
O papel da imprensa, agora só comparável ao período que antecipou a abertura democrática e a campanha que possibilitou a destituição de um governo eleito, vem sendo vigorosamente exemplar. E os combatentes desse bom combate ético têm nomes bem conhecidos: o próprio Merval Pereira, Jânio de Freitas, Elio Gaspari, Miriam Leitão, Boris Casoy, Villas-Boas Correia, Clóvis Rossi, Eliane Cantanhêde, Fernando de Barros e Silva, Otávio Frias Filho, para citar alguns nomes mais regulares. Eles sabem informar e analisar criteriosamente, com o saber agudo e ágil do imprevisível, e levar a efeito o cuidadoso e isento acompanhamento moral dos passos em falso da política doméstica, a propósito do que a palavra antecipada do Professor Francisco de Oliveira sobre a "irrelevância da política", insiste em ressoar como verdade incômoda.

O publicista, nascido do direito de cidade, desde a polis grega a civitas romana, é o servidor devotado da respublica.

Quando tudo se confunde, quando os homens e as coisas vão perdendo a singularidade, em meio ao nevoeiro que encobre a cena pública baixo moderna, o publicista se destaca como o vigilante incansável do cotidiano democrático e dos bons costumes éticos, na mesma hora em que a moral privada, ou privatizada, parece substituir a ética pública.

Aliás, a cada dia, somos perigosamente tolerantes com a ausência de delimitação de fronteiras entre o público e o privado.

São subprodutos da ciclotimia do poder, que vai desde a anorexia intelectual generalizada até o neopopulismo expansionista, na verdade o paleopopulismo, orientados e conduzidos pela propaganda enganosa. Os produtos oferecidos nas prateleiras eleitorais estão, em geral, falsificados. E porque falsificados, falsificam. É quando imaginamos oportuno recorrer à competência de algum especialista em teoria do caos. Porque a democracia brasileira vem operando no vermelho. Até quando? Não se sabe. Ela tem fôlego de gato.

O mais recente livro de Merval Pereira, O Lulismo no poder, corresponde à radiografia reveladora, ao retrato sem retoque, ao rosto sem maquiagem, do teatro político brasileiro nos últimos períodos. Perpassa por suas páginas o fio da navalha ético, em franco dissídio com a amnésia moral que parece institucionalizar-se. Ele analisa, avalia, pesa cuidadosamente. Sem ceder à crise de nervos, como nos esclarecera metaforicamente o timoneiro espanhol Pedro Almodóvar. Tudo serenamente, criteriosamente. No que a coragem moral se distingue radicalmente da bravata, uma vez que a primeira é substantiva, enquanto a segunda é tão só adjetiva. Daí a alta credibilidade que o rodeia: o reconhecimento da enérgica tomada de posição toda vez que desponta qualquer sinal de degradação dos valores.

Democracia, mais do que um conceito, é o caminho. Por isso devemos percorrê-lo com severa honradez. Sei que o vocábulo honradez é velho; mas estamos falando de velhos hábitos, que acreditamos devam persistir.

Dizem que a democracia traz consigo, desde cedo, desde a academia grega, graves defeitos de fabricação, sobretudo na hora de falar a verdade. Isso, contudo, não nos autoriza a ampliar a lista de inverdades. Quando a democracia se mostra infensa aos questionamentos, as taxas de racionalidade se reduzem substancialmente. Merval Pereira afirma que, quando se tem opinião "não há temas tabus".

A morte da opinião, o controle do repertório temático, camuflado ou explícito, conduzirá inevitavelmente à parada cardíaca da democracia representativa. A própria ideia de representação vai sendo acometida pela falência múltipla dos seus órgãos.

Apagam-se as diferenças, e promove-se a coalizão das colisões, em meio ao carnaval das impunidades. No lugar de uma sólida democracia representativa, o que se percebe é o baixíssimo nível da representatividade, a produção viciada dos diferentes poderes, apontando para a decisão dos patrocinadores, sejam eles laicos ou religiosos.

A corrupção na democracia e, o que é mais grave, a corrupção da própria democracia, estimula distúrbios e transtornos de consequências imprevisíveis.
Não é justo deixar de garantir a justiça redistributiva, legal e legítima; instaurando instâncias de responsabilidade que passarão normalmente pelo crivo dos meios de comunicação. A guerra ao jornalismo é uma guerra inglória, porque a opinião pública independente participa do mesmo compromisso com a verdade. De nada adiantará ocultar e dissimular, vigiar e espionar. É inadiável dialogar, compreender e encaminhar, em regime realmente aberto.

Constantemente nos deparamos com a máquina insana de desmantelamento da democracia. Mas ela só se desmantela quando, insisto, a representação é ilícita, e a representatividade, ilegítima.

Na outra margem do rio, aguarda a convocação da consciência emancipatória, necessariamente dialógica e múltipla, em condições de sustentar o avanço histórico. Como consequência primeira devemos pôr no lugar da assembleia de locutores desconectados, o pódio de interlocutores qualificados. A velha contenda maniqueísta entre liberdade e igualdade, que já havia excluído a fraternidade, merecerá o tratamento novo, sob os auspícios da negociação equânime da cidadania verdadeira. Aí se impõe, como item prioritário, evitar misturar negociação e negócio. Porque é comum confundir-se os dois níveis. A negociação é um instrumento hábil da democracia, uma via autorizada para a obtenção de consensos livres. Já o negócio tende a resvalar, com licença da palavra, em negociata.

A organização partidária vem sendo naturalizada, em vez de historicizada. Vai se tornando natural o uso abusivo do aparelho administrativo público, das licitações fraudadas, do lobismo desfigurado, dos discutíveis, até hoje jamais discutidos, dízimos partidários. A transparência se assemelha àquelas moedas que foram retiradas de circulação. Basta tentar decifrar a gestão, indigesta, dos fundos de pensão públicos e privados.

Em nossa pré-história colonial houve uma aparição estranha, conhecida como os "bolseiros do Rei", que parece ressurgir. A ação cultural como distribuição de brindes, e a bolsa família sem monitoramento e sem avaliação, vão nesse rumo. Não está de todo descartada a hipótese de uma sociedade saudavelmente de trabalhadores vir a ser, em grande parte, reduzida a uma sociedade de bolsistas. Falo apenas dos bolsistas ociosos, evidentemente.

A aceleração inóspita do Estado provedor traz, dentro de si, as ameaças do Estado autoritário, sem os benefícios do Estado previdência. Enquanto isso o país se apresenta como forte candidato à medalha de ouro na olimpíada internacional da sobrecarga tributária.

O pleito sobre a liberdade de expressão, bem ostensivo nas propostas de regulamentação dos veículos de comunicação, conforme o seu andamento, provavelmente nos dirá a quanto andamos. É possível notar, em vários campos da atividade societária, fortes taxas, diretas ou indiretas, de violência. A ponto de se tornar impossível saber quem detém o monopólio da violência. Muitas vezes sob a forma de defesa da pátria. A pátria, convenhamos, sempre alvo de patriotadas, ou patriotices, inócuas.

O tão louvável sufrágio universal ? marca registrada do republicanismo? tem perdido força no expediente retórico de mercadores inescrupulosos e no vazio deixado pela insuficiência educacional. Equivocam-se os que concluem que a economia dispõe, em suas contas bancárias, de todas as respostas para nossos problemas sociais.

Observe-se que as pautas do aumento salarial do servidor público, em qualquer escalão, sem dúvida inadiável, ignoram a qualidade e a lisura do desempenho. E a esdrúxula reforma eleitoral em curso, a uma só vez retardatária e apressada, prefere fazer vista grossa. Daí a objeção que vem provocando na imprensa.

Merval Pereira sabe, ou aprendeu com Gabriel García Marquez, por ele citado, quando "a realidade beira a ficção". De minha parte, como profissional da área, e prestando atenção à contracena política, ousaria acrescentar: às vezes ultrapassa a ficção.
O jornalismo não deixou de ser uma pedagogia pública, e a questão da qualidade se encontra no cerne do seu projeto. O novo acadêmico valoriza, porque tem consciência do seu alcance social, tudo o que diz respeito à cultura e à educação. A degenerescência do espaço público político decorre muito da fragilização do espaço público cultural. A própria cisão dos dois lugares já foi consequência do fosso estabelecido.

A correlação entre sociedade moderna e tempo livre abriu possibilidades e gerou desafios existenciais. A modernidade performática se expandiu incontrolavelmente, e o saldo desse empreendimento continua insatisfatório. Como preencher o tempo livre? A cultura nos oferece um leque variado de opções, para além das soluções salvacionistas, emergenciais e transitórias.

Como a Casa de Machado de Assis é também casa do livro e da leitura, vale destacar, até segunda ordem, que a leitura é uma dimensão constitutiva da experiência humana. Não devemos subestimar a sua complexidade. A leitura pode ser interessada ou instrumental, prazerosa ou simplesmente vital ? ler para viver. Ler não apenas para ter ou para fazer, mas para ser. Longe de uma estratégia pedagógica fechadamente funcionalista, caudatária de uma estreita política de resultados. Importa assim proteger e desdobrar a qualidade da leitura. O que implica reescolarizar a leitura e até reescolarizar a própria escola. A escola nunca é a estação de chegada, porém o ponto de partida. E neste momento deve reprogramar o leitor inerte ou refém, aquele que se entrega ao consumismo passivo. Não basta quantificar a leitura; é urgente qualificá-la. Os gestores culturais de plantão se esforçam em esquecer esse dever de casa, e se dedicam a alardear os índices quantitativos. O silêncio é amplo, geral e irrestrito quanto aos indicadores qualitativos.

Em vez disso, esses gestores anônimos inventam a roda a cada novo dia, e põem em circulação bravatas midiáticas, sejam com relação ao preço unitário do livro ou à normatividade dos direitos autorais, sem a audiência prévia e larga dos diferentes atores envolvidos nessa cenografia sensível. O que é válido para outras emblemáticas áreas culturais, como o teatro, o cinema, a televisão, o rádio, o circo, as festas populares, e todo o seu cortejo lúdico. Merval Pereira conhece por dentro essa trama delicada e fascinante. Temos muito que aprender com ele. Com este leitor compulsivo desde os arredores da adolescência.

Com a despolitização da esfera pública e o depauperamento do espaço cultural, crescem o vazio e a indiferença, apontando para o que já chamei de baixa modernidade. O esvaziamento cultural do espaço público, na sua versão majoritária e menos sigilosa, mal resiste aos abalos sísmicos que o cercam, e repercute diretamente na queda qualitativa da democracia.

A cultura é plural, sim. Mas sem permitir que o pluralismo se desvirtue na versão demagógica do politicamente correto. Convém resistir ao domínio do capitalismo tardio sobre o inconsciente coletivo, uma vez que o capital simbólico deve se manter imune às infiltrações indevidas do capital financeiro. O empobrecimento do capital simbólico, o propalado desencantamento do mundo, deságua na representação servil ou descalibrada. Cabe educar e reeducar para libertá-lo da fúria burocrática, da blindagem mercantilista, da opção instrumental, de tantas outras patologias que o século XX não conseguiu curar.

A educação sem qualidade, tão presente nas estatísticas oficiais e oficiosas, no lugar de promover a inclusão social ? ferida aberta ?, realimenta a exclusão, especialmente em tempos globalizados, quando a competitividade adquire contornos mais alarmantes. Logo, a inclusão desqualificada é sinônimo de exclusão.

Em recente artigo sobre "a qualidade em xeque", Merval Pereira, acompanhado de interlocutores qualificados, transmitiu, com um realismo incômodo porém oportuno: "não há nada no panorama educacional brasileiro que justifique razão para o otimismo".

Pelo visto, os sinais trocados da mobilização social não foram satisfatoriamente corrigidos, pesando seriamente sobre a qualidade da própria vida democrática.
Além do mais, surgem no ar algumas irrupções menos aguardadas: a radioatividade do saber e do parecer, a revitalização da espionagem, o sigilo desvendado ou vazado, a sua propagação vertiginosa, para intranquilidade dos governos e das corporações. A coabitação entre o virtual e o virtuoso, o formato e a forma, o discurso e o desempenho, não conseguiram ainda estabelecer complementaridades criativas, no interior das quais venham a ter lugar as recíprocas reoxigenações.

Não se pode desconhecer, na sociedade dos nossos dias, os impulsos não raro insólitos, das redes sociais. Nada disso tem passado desapercebido às antenas parabólicas do jornalista multimidiático Merval Pereira.

Seus olhos abertos para o instante não significam investir no espontaneísmo predatório, nem se entregar à estratégia orgiástica do entretenimento. O homem moderno reconhece a necessidade compensatória do divertimento. Mas todo cuidado é pouco para dosar o exagero do presentismo, a mais-valia da urgência e o delírio da velocidade. O império romano declinou com a mímica da representação, patrocinada pelo pão e o circo. Essa lição Merval Pereira sabe de cor e salteado, e ministra diariamente na sua idônea pauta jornalística.

O livro de Merval Pereira traz a valorização do melhor universalismo, aquele que procura afastar-se da sua ancestralidade puramente idealista e abstratizante. Parte da constatação implícita de que foi perdendo vigor a estrutura imunológica de que dispunham o Estado e a nação.

Não se trata simplesmente de recusar o paradigma globalizador, mas de substituir a ideia de paradigma, troféu de guerra da hegemonia das ciências sociais, por um conjunto de referências críticas plausíveis, por um elenco de instrumentos argumentativos distantes da ditadura epistemológica. Menos ainda de repelir a globalização com as ferramentas da própria globalização. Trata-se também de desprovincianizar a nação, absorvendo a emergência do espaço público transnacional.

Sem qualquer concessão ideológica, o que não implica que sejamos liberados para aceitar resignadamente o vaticínio de que perdemos a nação sem ganhar o mundo. Convém se proteger, é claro, contra as sentenças daquele universalismo, filho dileto da autossuficiência eurocêntrica, inabilitado para a partilha e o reconhecimento do outro. Não tem faltado a Merval Pereira a compreensão sutil do xadrez internacional, da relativa despotencialização das potências, ou da eclosão internética, como comprova a sua interlocução com pensadores do porte de Jürgen Habermas, Alain Tourraine ou Manuel Castells. Já dialogara com Max Weber e Norberto Bobbio.

O mais recente livro de Merval Pereira chega a ser um programa de governo. E quando falo de programa de governo nunca tenho em mente a sequência de iniciativas desgarradas, porém o conjunto sistemático e coerente, socialmente plantado. O que assume papel relevante especialmente em geografia onde se multiplicam os governos sem programa.

Ao cair o nível qualitativo da educação, ou do seu correlato, a democracia de qualidade, ou ainda do vigor da representatividade política, sobe o número de eleitores inertes, terreno propício para a prosperidade da propaganda enganosa, da marquetagem desenfreada. Em meio a essa subversão cênica entra no palco o previsível ator, embora superestimado pelo caixa dois; um prestidigitador até aqui bem sucedido. É o marqueteiro, indecifrado herói do colapso político.

Já é hora de pensar com e para além da política. A nossa dieta reflexiva tem sido extremamente ascética. É inadiável retirar a política do seu gueto eleitoreiro. E esta constitui uma tarefa de todos nós, jornalistas ou simples leitores. Em qualquer hipótese, desde que sejam cidadãos, no exercício emancipado da cidadania. O cidadão é o homem que fez, acidentada e demoradamente, o trânsito da consciência solitária para a existência solidária. Por todos os lados, ganha corpo e alma, a exigência de democratizar a democracia. Começando por isolar as zonas de sombra que se projetam sobre a luminosidade do que seria a democracia tropical. Merval Pereira jamais vacila na sua denúncia tranqüila.

Com o alargamento digital do horizonte individual, outros parâmetros se impõem, intensificando os abalos e as turbulências do mundo da vida. As promessas "divinas da esperança" foram desacreditando-se. E desacreditaram a imaginação. A tecnoburocracia deletou o encanto do mundo e, sem matizar, propalou o fim da utopia.

Preferiu desconhecer que toda construção que se quer viável necessita recorrer a doses razoáveis do impulso utópico.

Muitos consideram essa aspiração como ambição ilusória, completamente desdatada. Uns pouco se inclinam em confiar na esperança concreta e, a partir dela, e das batidas cardíacas da história, reinventar a democracia, sob o signo do risco e a inteligência serena das ameaças crescentes. Advindas sobretudo, não da filosofia, das artes, da literatura, porém dos caminhos frequentemente tortuosos e peremptórios da tecnologia performática. Quem viver verá.

A nação adiada espera, ansiosamente, concretizar a previsão generosa de Stefan Zweig, aquele que em dias distantes sonhou com o "país do futuro".

A história vem privilegiando situações de fronteira, e a literatura criando outras territorialidades. Merval Pereira se fez beneficiário dessa localização, ou dessa instabilidade estável. É um dos últimos passageiros da galáxia de Gutenberg, e dos primeiros a ter entrada franca no cibermundo. É um operário da construção do amanhã.

Não posso concluir sem destacar um traço marcante de sua personalidade, hoje tão escasso nestes nossos dias de baixa modernidade. É claro que estou salientando a civilidade, essa força motriz da convivência. Do viver com, fraterno e íntegro.
Procurei, nesta exposição, seguir o roteiro temático oferecido pela obra de Merval Pereira. Se não consegui, não foi por culpa dele, porém somente minha.

Esta Casa sempre se constituiu de jornalistas referenciais: Austregésilo de Athayde, Roberto Marinho, Odylo Costa Filho, José Cândido de Carvalho, Antônio Callado, Carlos Castello Branco, para exemplificar com alguns nomes emblemáticos, que partiram deixando muitas saudades.

Ela, a Casa de Machado de Assis, agora é sua Casa também, Acadêmico Merval Pereira."


Merval Pereira toma posse na ABL
e assume cadeira de número 31

Confira o discur
so de posse
de Merval Pereira na ABL


Merval Pereira toma posse na ABL e assume cadeira de número 31

O GLOBO, 23 de setembro de 2011


RIO - O jornalista Merval Pereira, colunista do GLOBO, tomou posse nesta sexta-feira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Numa cerimônia realizada na sede da instituição, no Centro, ele assumiu a cadeira de número 31, sucedendo o escritor Moacyr Scliar, morto em fevereiro deste ano.

- Estou muito satisfeito de participar de uma instituição que tem um papel tão importante na preservação e difusão da cultura brasileira - disse Merval, que além de assinar uma coluna diária no GLOBO também é comentarista político da GloboNews e da CBN.

O discurso de boas-vindas foi feito pelo acadêmico Eduardo Portella, que enfatizou o importância do trabalho do jornalista no atual contexto político brasileiro.

- Diante da ineficiência das oposições, quem segura a flama da consciência crítica no país são os jornalistas. É aí que existe um núcleo vigoroso de contestação racional do poder. É importante distinguir a consciência moral da bravata. O Merval é uma pessoa que pratica a denúncia tranquila, na qual o vigor moral se impõe por ele mesmo, dispensando os adjetivos exaltados - avaliou Portella.

O presidente da ABL, o historiador Marcos Vinicios Vilaça, lembrou por sua vez que o ingresso de Merval na instituição dá sequência a uma longa tradição de acadêmicos jornalistas:

- A ABL começou com Nabuco, com Machado, e daí em diante nunca deixou de ter jornalistas expressivos entre seus integrantes. Merval mantém essa tradição, e particularmente dentro do jornalismo político, que também foi a área de atuação de muitos de seus antecessores. A atuação dele em diversos meios de comunicação, além disso, confirma a visão que Machado defendia para academia. de conciliar a tradição e a modernidade. Merval é moderno, sem ser modernoso.

" É o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático. E é nos jornais que ainda se abriga maior parte do jornalismo de qualidade "

Em seu discurso de posse, Merval, seguiu a tradição de fazer um histórico de seus antecessores na cadeira que assumiu. Ao falar de Moacyr Scliar, destacou a gentileza do escritor e seu pioneirismo na história da literatura nacional:

- Moacyr Scliar, um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea, nela introduziu a temática do imigrante judeu e urbano, mas fazia questão de esclarecer que não se considerava um escritor judeu, como Isaac Bashevis Singer, mas "um escritor brasileiro de ascendência judaica" - declarou.

Merval destacou ainda o papel do jornalismo na construção da democracia.

- É o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático. E é nos jornais que ainda se abriga maior parte do jornalismo de qualidade - afirmou. - Agora faço parte de uma Casa cujo propósito é aquele que busquei a vida inteira, com meu ofício: produzir conhecimento e difundi-lo, para o bem de nosso país, de nossa cultura.

Merval é a oitava pessoa a ocupar a cadeira 31 da ABL, cujo fundador é Guimarães Junior e que tem como patrono Pedro Luís. Seus demais ocupantes foram João Ribeiro, Paulo Setúbal, Cassiano Ricardo, José Cândido de Carvalho e Geraldo França de Lima - este, sucedido por Moacyr Scliar em 2003.

Nascido no Rio de Janeiro em 1950, Merval Pereira ocupa ainda a cadeira 48 da Academia Brasileira de Filosofia. Exerceu cargos de reportagem e de chefia nos principais veículos da imprensa brasileira. Ganhou em 1979 o Prêmio Esso pela série de reportagens "A segunda guerra, sucessão de Geisel", publicada no "Jornal de Brasília" em parceria com André Gustavo Stumpf e depois transformada em livro. É autor ainda de "O lulismo no poder" e recebeu da ABL a medalha Machado de Assis.

Leia a íntegra do discurso de Merval Pereira ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras

"Quis o destino que eu ocupasse, graças à vossa generosa acolhida, a cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras, já ocupada anteriormente por vários jornalistas, a começar por seu patrono, Pedro Luís Pereira de Souza, jornalista, poeta, político, e ministro de Negócios Estrangeiros. Considerado orador excepcional, foi grande amigo de Machado de Assis, o fundador de nossa Casa.

Em "O velho Senado", texto clássico de Machado de Assis, está relatado que ele, Pedro Luís e Bernardo Guimarães começaram a "cobrir" o Senado praticamente juntos, em 1860 ou 1861. Machado, pelo Diário do Rio de Janeiro, Pedro Luís, pelo "Correio Mercantil", e Bernardo Guimarães, pelo "Jornal do Commercio".

Jornalistas também foram Luis Pereira Magalhães, José Candido de Carvalho, Paulo Setubal, Cassiano Ricardo, e Moacyr Scliar, a quem sucedo mas não substituo, assíduo cronista de jornais, que definiu o jornalismo como "um espaço literário".

Todos os meus antecessores, no entanto, foram eleitos para a Academia graças a outros dons: foram grandes historiadores (Paulo Setubal), grandes poetas (Cassiano Ricardo), grandes romancistas (José Cândido de Carvalho e Moacyr Scliar).

Embora tenha já escrito alguns contos, e continue a escrever outros tantos, quase na clandestinidade, sei que eles não me levariam tão longe. Ser um ficcionista é, para mim, uma doce utopia. Aqui chego como jornalista pura e simplesmente.

Na história da ABL está registrada a presença de grandes jornalistas como Joaquim Nabuco, Hipólito da Costa, Austregésilo de Athayde; João Neves da Fontoura, Pedro Calmon, Alceu de Amoroso Lima, Carlos Castello Branco, Antonio Callado, Otto Lara Resende, Odylo Costa, filho, Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, Barbosa Lima Sobrinho, para ficarmos apenas em alguns que já não estão entre nós.

Ao ver-me alçado a essa turma, e diante de tantos outros grandes jornalistas sentados à minha frente, toma conta de mim um orgulho que não consigo esconder.
Merval cumprimenta José Serra na cerimônia de posse na ABL. Foto: Fábio Rossi

A própria ABL nasceu em uma redação, a da "Revista Brasileira", fundada por José Veríssimo. O historiador Hélio Vianna afirmava que, sem a história do jornalismo brasileiro, não seria possível a elaboração da verdadeira História do Brasil independente, desde a chegada do Príncipe Regente D. João ao Rio de Janeiro em 1808.

Para Peregrino Junior a imprensa no Brasil foi sempre uma escola de escritores. João Francisco Lisboa, José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, são apenas alguns escritores cujas obras aparentemente pouco devem ao jornalismo, mas que inicialmente foram jornalistas militantes.

Trago o jornalismo, a literatura e a política em meu sangue, nas minhas raízes. Meu avô materno, Clodomir Cardoso, foi senador da República, interventor no Maranhão, constituinte de 1946.

Atuante jornalista, participou como redator e diretor do jornal "A Pacotilha". Grande intelectual, foi membro fundador da Academia Maranhense de Letras, onde foi sucedido pelo poeta e jornalista Odilo Costa, filho, também membro desta Academia. Traduziu "A Imitação de Cristo", foi professor fundador da Faculdade de Direito do Maranhão.

Em 1917, eleito prefeito de São Luís, introduziu a iluminação elétrica na cidade, fato registrado no romance "Degraus do Paraíso", do acadêmico Josué Montello.

Em outro romance, "Coroa de Areia", Montello coloca as características físicas de meu avô em um personagem da sua história, caminhando pelas ruas de São Luis.

Graças a meu pai, Merval, médico de clínica geral, os cada vez mais raros "médicos de família", e a minha mãe, Lenita - aqui presente, no esplendor de seus 93 anos - vivi minha infância e adolescência entre livros.

Marca minha juventude uma coleção mais velha que eu 3 anos, de couro vermelho, comemorativa do centenário de nascimento do grande autor português, na qual li toda a obra de Eça de Queiroz.

Ainda guardo nas mãos, cujos dedos hoje repassam páginas de livros digitais nos Ipads da vida, a memória daquele manuseio.

Gosto de lembrar duas iniciativas, partes de um mesmo processo, mas que muitos ainda querem ver em lados opostos: o mundo dos computadores e o mundo dos livros.

A modernização do Globo exigiu de nós estarmos ainda mais atentos ao espírito de nossa época. Foi assim que, como editor-chefe, fui um entusiasta do lançamento do caderno "Informática Etc", em 1991, quando os computadores pessoais apenas engatinhavam, e era preciso difundir esse novo mundo para que um número cada vez maior de pessoas se familiarizasse com revolução digital.

Foi uma iniciativa pioneira do saudoso amigo Evandro Carlos de Andrade, então diretor de redação do Globo, mesmo se levarmos em conta jornais americanos, que apenas tardiamente seguiram o mesmo caminho.

Ao mesmo tempo, tão logo assumi a direção de redação do jornal em substituição a Evandro, que fora para a televisão, em 1995, fiz questão de lançar, com o apoio irrestrito do João Roberto Marinho, um suplemento literário, o Prosa e Verso, dedicado àquilo que, em qualquer plataforma, mostra-se insubstituível, o livro, tão caro a todos os aqui presentes.

Não é o papel ou os chipes que importam, mas o mundo que os livros trazem consigo, seja em celulose ou em bytes.

O patrono da cadeira que ocuparei, Pedro Luis, foi escolhido por Luis Guimarães Junior, o primeiro a sentar na cadeira 31. Quando ocupava a função de ministro de Negócios Estrangeiros de D.Pedro II, temporariamente Pedro Luis teve que acumular essa função com a de ministro de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, devido à morte do ocupante anterior.

Como não tinha muito tempo para exercer as duas funções, alçou Machado de Assis, que já trabalhava no Ministério da Agricultura, a oficial de seu gabinete, fazendo com que se sentisse, nas suas palavras, "quase ministro".

Se foi Machado de Assis quem apoiou Luis Guimarães, incentivando sua literatura, foi Pedro Luis quem levou Luis Guimarães para a diplomacia.

Machado gostava de Pedro Luis como poeta de cunho social e político, colocado entre os "condoreiros", precursor de Castro Alves.

Mas o julgamento de Machado parece ter sido dominado pela amizade, a julgar o que dele disse José Veríssimo: "Deixou meia dúzia de poemas, os melhores no tom épico ("Os voluntários da morte", "Terribilis Dea"), que todo o Brasil conheceu, recitou e admirou. Mas a sua obra dispersa, de mero diletante, se lhe criou um nome meio lendário como os de José Bonifácio e Francisco Otaviano, não basta a assegurarlhe um posto de primeira ordem na nossa poesia.".

Luís Caetano Guimarães Júnior, diplomata, poeta, romancista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro em 17 de fevereiro de 1847, e faleceu em Lisboa, Portugal, em 20 de maio de 1898. Foi um dos dez membros eleitos para se completar o quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde criou a Cadeira nº 31.

Aos dezesseis anos escreveu o romance Lírio branco, dedicado a Machado de Assis e em troca recebeu uma carta de Machado animando-o a prosseguir na carreira das letras.

Fez o curso de Direito no Recife entre 1864 e 1869, onde assistiu ao desenvolvimento da "escola condoreira", de que tomou parte.

Ao lado do jornalismo, escrevia contos, comédias e poesias. O poeta e amigo Pedro Luís, então ministro dos Negócios Estrangeiros, ofereceu-lhe um lugar na diplomacia como secretário de Legação em Londres.

De 1873 a 1894, passou por vários outros postos. Suas principais obras são "Corimbos", que representa a fase em que viveu no Brasil, de 1862 a 1872, e "Sonetos e rimas", do período em que residiu na Europa. É considerado um precursor da poesia de Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.

O segundo ocupante da Cadeira 31, João Ribeiro, foi jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor. Desde 1881, dedicou-se ao jornalismo e fez amizade com os grandes jornalistas da época, Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio e Alcindo Guanabara.

Sua primeira coletânea de poesias, os "Idílios modernos" mereceu de seu amigo e conterrâneo Sílvio Romero um artigo na "Revista Brasileira" em 1881. Tinha especial predileção por pseudônimos criativos. No jornal Época, de 1887 a 1888, escreveu em várias seções, sob diversos pseudônimos: Xico-Late, Y., N., Nereu.

De 1888 a 1889, no Correio do Povo, assinava sob o pseudônimo de "Rhizophoro" ( o que tem raízes) a seção "Através da Semana". Em A Semana, trabalhou ao lado de Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Rodrigo Octavio, entre outros, e publicou os artigos que se constituiriam nos seus "Estudos filológicos", de 1902.

João Ribeiro desde cedo dedicou-se ao magistério, em diversas áreas: filologia, história e ensaio. A partir de 1895 fez inúmeras viagens à Europa, ora por motivos particulares, ora em missões oficiais, mas nunca deixou de escrever para jornais brasileiros, através de colaborações no Jornal do Commercio, no Dia e no Comércio de São Paulo. A última fase de atividade na imprensa foi no Jornal do Brasil, desde 1925 até a morte.

Na Academia, fez parte de numerosas comissões, entre as quais a do Dicionário e a de Gramática. Foi um dos principais promotores da reforma ortográfica de 1907.

Uma curiosidade: em 22 de dezembro de 1927, depois de ter recusado por diversas vezes, a Academia o elegeu presidente. João Ribeiro apresentou, imediatamente, sua renúncia ao cargo.

Terceiro ocupante da Cadeira 31, eleito em 6 de dezembro de 1934, na sucessão de João Ribeiro, Paulo Setúbal, advogado, jornalista, ensaísta, poeta e romancista, nasceu em Tatuí, SP, em 1º de janeiro de 1893, e faleceu em São Paulo, SP, em 4 de maio de 1937.

Órfão de pai aos quatro anos, mudou-se com a família para São Paulo, e foi no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos irmãos maristas, que Paulo Setubal começou o interesse pela literatura e pela filosofia. Leu Kant, Spinoza, Rousseau, Schopenhauer, Voltaire e Nietzsche.

Na literatura, influenciou-o sobretudo a leitura de Antero de Quental e Guerra Junqueiro, clara influência de seu primeiro livro de poesias, "Alma cabocla".

Era a época da campanha civilista quando foi procurar emprego no diário A Tarde, enquanto cursava a Faculdade de Direito. A publicação de uma de suas poesias no jornal deu-lhe notoriedade imediata, e ele ganhou sua primeira coluna.

A saúde precária, com os primeiros sinais da tuberculose, o obrigaria a freqüentes interrupções no trabalho, para repouso.

Advogado bem-sucedido, iniciou sua produção literária especializado no romance histórico, que escrevia de maneira a tornar agradável a leitura, longe dos academicismos, o que o levou a ser o escritor mais lido do país com A marquesa de Santos (1925) e O príncipe de Nassau (1926).

A série de livros sobre o ciclo das bandeiras, começando em 1933 com O ouro de Cuiabá e encerrando dois anos depois com O sonho das esmeralda, levantava o orgulho paulista na fase pós-Revolução constitucionalista de 1932.

Na definição do poeta Cassiano Ricardo, que o sucedeu na Cadeira 31,"quando o chão brasileiro ainda estava povoado de napéias, hamadríadas, nereidas e egipãs, ele já se havia colocado ao lado dos sacis, dos juruparis, das uiaras e dos caaporas. O romancista histórico surgiu, pois, com a sua posição definida. Num momento muito claro de afirmação brasileira".

Em 1935, Paulo Setúbal, ao mesmo tempo em que chega ao apogeu com a eleição para a Academia Brasileira de Letras, entra em profunda crise existencial, que terá repercussão em sua literatura.

Ele, que era expansivo e frequentador de festas, passou a freqüentar a igreja da Imaculada Conceição, a ler a Bíblia e livros como a Psicologia da fé e A imitação de Cristo. É quando escreve o Confíteor, livro de memórias, a narrativa de sua conversão, que ficou inacabado.

Cassiano Ricardo, jornalista, poeta e ensaísta, o quarto ocupante da Cadeira 31, nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974. Aos 16 anos publicava o primeiro livro de poesias, "Dentro da noite".

Foi um dos líderes do movimento da Semana de Arte Moderna da 1922, participando ativamente dos grupos "Verde Amarelo" e "Anta", ao lado de Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Cândido Mota Filho e outros.

No jornalismo, Cassiano Ricardo trabalhou no Correio Paulistano, como redator, e dirigiu A Manhã, do Rio de Janeiro. Também foi o criador das revistas Planalto (1930) e Invenção (1962).

Em 1937 fundou, com Menotti del Picchia e Mota Filho, a "Bandeira", movimento político que se contrapunha ao Integralismo e que tinha o jornal "O Anhangüera", para defender sua ideologia, assim definida: "Por uma democracia social brasileira, contra as ideologias dissolventes e exóticas."

Adota a posição nacionalista do movimento de 1922, revelando-se um modernista ortodoxo até o início da década de 40.

Em 1924, fundou a Novíssima, revista literária dedicada à causa dos modernistas e ao intercâmbio cultural pan-americano.

As obras "Vamos caçar papagaios", de 1926, "Borrões de verde e amarelo", de 1927 e "Martim Cererê" de 1928 estão entre as mais representativas do Modernismo.

Com "O sangue das horas", de 1943, inicia o que a critica classifica de "uma nova e surpreendente fase", um lirismo introspectivo-filosófico que se acentua em "Um dia depois do outro", de 1947, obra considerada o marco divisório da sua carreira literária.

Acompanhou de perto as experiências do Concretismo e do Praxismo, movimentos da poesia de vanguarda nas décadas de 50 e 60. A sua obra "Jeremias sem-chorar", de 1964, é bem representativa desta posição de um poeta experimental.

Essa sua permanente busca pelo moderno fez com que, na Academia Brasileira de Letras, como relator da Comissão de Poesia em 1937, concedesse a láurea a Viagem, de Cecília Meireles, o primeiro livro da corrente moderna consagrado na Academia.

Na década de 30, Cassiano dedicou-se à pesquisa histórica, interrompendo por quase um decênio sua atividade propriamente poética.

Defensor dos postulados do Estado Novo, foi assessor de Getúlio Vargas, tendo trabalhado no Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, ocasião em que dirigiu o jornal A Manhã, de propriedade do governo, que possuía dois suplementos literários, Autores e Livros, dirigido por Mucio Leão, e o Suplemento da América, dirigido por Ribeiro Couto, ambos acadêmicos.

Publicou em 1940 um livro de grande repercussão, Marcha para Oeste, em que estuda o movimento das entradas e bandeiras.

Cassiano Ricardo, aliado e propagandista da figura de Vargas, em suas pesquisas históricas e estudos focalizava o que considerava elementos definidores da cultura brasileira e suas implicações na esfera política.

Foi através da imprensa, e dentro desse espírito de brasilidade que Cassiano Ricardo travou um célebre debate com Sérgio Buarque de Holanda sobre "o homem cordial".

Coube a ele inaugurar a polêmica, através de um artigo de 1948 publicado originalmente na revista paulistana Colégio, defendendo a "bondade fundamental dos brasileiros".

Declarando-se pouco propenso às "esgrimas literárias", o historiador Sérgio Buarque de Holanda rejeitou o que considerou o caráter deformador que Cassiano impôs às suas idéias, a noção do brasileiro como "homem cordial", aquele que, na sua concepção, age segundo o "coração" - não no sentido de ser bondoso, mas por pautar suas ações pelo afeto e pela intimidade e ser incapaz de separar vida pública de vida privada.

Quinto ocupante da Cadeira 31, eleito em 23 de maio de 1974, na sucessão de Cassiano Ricardo, José Cândido de Carvalho, jornalista, contista e romancista, nasceu em Campos, RJ, em 5 de agosto de 1914, e faleceu em Niterói, RJ, em 1º de agosto de 1989.

José Cândido, entre 1930 e 1939, exerceu funções de redator e colaborador em diversos jornais de Campos, como a Folha do Comércio,onde trabalhava um dos jornalistas mais brilhantes de sua geração, Raimundo Magalhães Júnior, O Dia, onde comentava a política internacional, e ainda a Gazeta do Povo e o Monitor Campista.

Começou a escrever, em 1936, o romance Olha para o céu, Frederico!, publicado em 1939, pela Vecchi, na coleção "Novos Autores Brasileiros". Formado em 1937, pela Faculdade em Direito do Rio de Janeiro, entrou para a redação de A Noite, um jornal de quatro edições diárias.

Com o desaparecimento de A Noite, em 1957, vai chefiar o copidesque de O Cruzeiro e dirigir, substituindo Odylo Costa, filho, a edição internacional da revista, então a mais importante do país.

Somente 25 anos depois do primeiro romance José Cândido de Carvalho publica, em 1964, pela Empresa Editora de O Cruzeiro, o livro "O coronel e o lobisomem", uma das obras-primas da ficção brasileira, que teve imediatamente grande sucesso, com sucessivas edições até hoje e traduções em diversos idiomas.

Obteve o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira, e o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do PEN Clube do Brasil.

José Cândido de Carvalho foi diretor da Rádio Roquette-Pinto, do Serviço de Radiodifusão Educativa do MEC; presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro; da Fundação Nacional de Arte (Funarte) e do Instituto Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (Rioarte).

José Cândido publicou também dois livros de "contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil", e reuniu, em "Ninguém mata o arco-íris", uma série de perfis jornalísticos.

Sexto ocupante da Cadeira 31, eleito em 30 de novembro de 1989, Geraldo França de Lima, romancista e professor, nasceu em Araguari,MG, em 24 de abril de 1914 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de março de 2003.

O seu primeiro escrito, descrevendo a viagem de cinco dias pela antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas, de Uberaba a Belo Horizonte, foi publicado no jornal Araguari. Em 1932, os estudantes do último ano do ginásio criaram o grupo literário Arcádia Ginasiana de Letras, e Geraldo França de Lima foi eleito seu presidente e diretor do jornal O Kepi, onde publicou suas primeiras poesias.

Em 1934, no Rio de Janeiro, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil e obteve o primeiro emprego, como revisor do jornal A Batalha, de Júlio Barata, estreando também como articulista.

Em 1935, Bastos Tigre publica suas poesias na revista Fon-Fon. Em Barbacena, durante a Segunda Guerra Mundial, conheceu o escritor francês Georges Bernanos, de quem se tornou amigo e confidente.

O autor do Diário de um Cura de Aldeia vivia, desde 1938, no Brasil, numa espécie de auto- exílio, depois de condenar o regime franquista e o armistício que a França celebrara com a Alemanha nazista.

Geraldo França de Lima escreveu importante ensaio sobre Bernanos, publicado por Paulo Rónai em "Comentário" em 1960. Nesse trabalho, revela a definição que Bernanos fazia de si mesmo: "sou um antifascista que odeia a mediocridade, a falsa modéstia, a virtude fingida e estudada, a mentira e a superficialidade. Sou um antifascista e pouco me importa que o fascismo esteja na Itália, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, na Rússia ou nos Estados Unidos."

Geraldo França de foi membro da Procuradoria Geral da República e da Consultoria Geral da República e assessor do Presidente Juscelino Kubitschek e do presidente do Conselho de Ministros, Tancredo Neves.

O ano de 1961 marca o ingresso de Geraldo França de Lima em definitivo na vida literária.

Guimarães Rosa, a quem conhecera ainda em Barbacena em 1933 como capitão-médico do 9º BCM da Força Pública Mineira, encontrou na escrivaninha do amigo os originais do romance "Uma cidade na província", e estimulou-o a publicá-lo. Mudou o nome para "Serras Azuis" e o indicou ao editor Gumercindo Rocha Dórea dizendo que estava diante "de um grande romancista".

Seu último romance, "O sino e o som" foi lançado em 2002.

Minhas amigas, Meus amigos,

A primeira vez em que encontrei Moacyr Scliar fui surpreendido por um gesto afetuoso de um desconhecido. Estava aqui mesmo na Academia Brasileira de Letras, numa homenagem ao historiador José Murilo de Carvalho, quando o avistei de longe, fazendo sinais para mim.

Achei que era um engano, mas ele se aproximou, gestos largos, para dizer: "Seu seu fã". O espanto não impediu que respondesse de pronto: "Há um engano aqui. Eu é que sou seu fã".

A partir desse diálogo inicial, criamos uma relação que, se não era nada íntima, era proveitosa para mim sempre que nos encontrávamos.

Conversávamos sobre política, ele tinha sempre um comentário a fazer sobre minhas colunas - dizia que eu era o Thomas Friedman brasileiro -, me cobrava um livro de ensaios sobre os temas de que trato no cotidiano: democracia, ética, liberdade, direitos humanos, comunicações, livro que ainda pretendo organizar.

Tinha um especial gosto pelo jornalismo, tratava-o como um espaço literário, mas se interessava vivamente pelos aspectos éticos da profissão, dava a ela uma importância ampla dentro da democracia.

Foi colunista do jornal Zero Hora, e colaborou com a Folha de S.Paulo desde a década de 70, onde assinava uma coluna no caderno Cotidiano com crônicas em que romanceava fatos reais publicados pelos jornais.

Sétimo ocupante da Cadeira nº 31, eleito em 31 de julho de 2003, Moacyr Scliar, um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea, nela introduziu a temática do imigrante judeu e urbano, mas fazia questão de esclarecer que não se considerava um escritor judeu, como Isaac Bashevis Singer - de cujo livro 47 Contos, da Companhia das Letras fez o prefácio -, mas "um escritor brasileiro de ascendência judaica".

No contato com os imigrantes ouviu muitas histórias interessantes, e vem daí a influência da condição judaica na sua ficção. Estudou em uma escola íidiche, que Singer definiu como "um idioma do exílio, não ligado a um território, não amparado pelo poder estatal, um sábio e humilde idioma, o idioma de nossa atemorizada, mas esperançosa, humanidade".

O rico folclore iídiche inclui numerosas anedotas e, segundo Scliar,considerado o escritor brasileiro que melhor se utilizou do humor judaico, esse é "um humor peculiar, contido, melancólico, filosófico. Não é um humor para gargalhadas, antes para um sorriso".

Seus pais, José e Sara Scliar, oriundos da Bessarábia (Rússia), chegaram ao Brasil em 1904, e seu nome, escolhido por sua mãe após a leitura de Iracema, de José de Alencar, significa "filho da dor".

Ele próprio dizia: "os nomes são recados dos pais para os filhos e são como ordens a serem cumpridas para o resto da vida". E ele cumpriu à risca, com uma literatura de cunho humanista, próxima dos excluídos sociais.

A família acabou indo do interior para Porto Alegre, radicando-se no bairro do Bom Fim, onde, segundo sua descrição, viviam em casas minúsculas, exercendo profissões como as de marceneiro, alfaiate,vendedores ambulantes.

Uma vida difícil, de muitas carências, compensada pelo espírito comunitário, pela coesão familiar. Todas as noites estas famílias se reuniam para aquilo que era quase um ritual: ficavam tomando chá (logo substituído pelo chimarrão) e conversando - contando histórias, em geral sobre suas primeiras experiências de Brasil.

"Estas narrativas, que me encantavam, despertaram em mim a vontade de contar histórias - mas de contá-las por escrito".

Segundo o crítico literário José Castello, três grandes influências marcam a literatura de Scliar: a presença contínua de Franz Kafka, como ele um judeu deslocado de sua condição; a escrita fantástica de Júlio Cortázar; e a leitura laica da Bíblia, em particular do Novo Testamento, em que as parábolas proliferam.

Castello lembra que em Manual da paixão solitária, de 2008, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Ficção em 2009, Scliar utiliza-se da Bíblia para falar de Judá, o quarto filho de Jacó, e de seus três filhos, Er, Onan e Selá e suas difíceis relações com o amor.

Seu mais importante romance, O centauro no jardim, de 1980, incluído na lista dos 100 melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos organizada pelo National Yiddish Book Center, dos EUA, usa a figura do centauro, metade cavalo, metade homem, para abordar a divisão da alma humana.

Nasceu de um texto que escreveu para jornal, sobre uma corrida de cavalos que se realiza todos os anos em Porto Alegre. Por uma associação de idéias, pensou no centauro - o gaucho é chamado de o centauro dos pampas -, o que o levou ao conflito de identidade, pela simbologia mitológica do centauro, entre os aspectos racionais e irracionais, "entre o judaísmo e a brasilidade, o homem do campo e o da cidade, o pacato cidadão da classe média, acomodado, e o aventureiro que há em todos nós".

Sua condição de filho de imigrantes aparece em obras como A Guerra no Bom Fim, O Exército de um Homem Só, O Centauro no Jardim, A Estranha Nação de Rafael Mendes, A Majestade do Xingu.

A outra influência é a sua formação de médico de saúde pública, que o levou a uma vivência de dor e sofrimento que já carregava com seu nome.

Esse conhecimento da realidade brasileira aparece em obras, como A Majestade do Xingu, A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura. Seu primeiro livro, publicado em 1962, foi Histórias de Médico em Formação, contos baseados em sua experiência como estudante. Ainda menino, gostava de ir ao pronto-socorro do Bom Fim para acompanhar o atendimento aos pacientes.

Especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, exerceu a profissão junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU).

Tinha obsessão pela ciência e pelos grandes cientistas, e não é por acaso, portanto, que dois de seus livros tenham como personagens o médico e indigenista Noel Nutels, em A majestade do Xingu, romance de 1997, e o sanitarista Oswaldo Cruz, de Sonhos tropicais, de 1992.

Foi professor visitante na Brown University (Department of Portuguese and Brazilian Studies) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos.

É autor de 74 livros em vários gêneros: romance, conto, ensaio, crônica, ficção infanto-juvenil. Obras suas foram publicadas em muitos países: Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália, Rússia, Tchecoslováquia, Suécia, Noruega, Polônia,Bulgária, Japão, Argentina, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Canadá e muitos outros, sempre com grande repercussão crítica. Teve textos adaptados para o cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no exterior.

Scliar recebeu três vezes o Prêmio Jabuti, a mais tradicional distinção literária do país: em 1988, pelo volume de contos O olho enigmático, em 1993, pelo romance Sonhos tropicais; e em 2009, pelo romance Manual da paixão solitária. Pelos contos de A orelha de Van Gogh, ganhou o prestigioso prêmio Casa de Las Americas em 1989. Também recebeu o Prêmio José Lins do Rego, da Academia Brasileira de Letras, pelo romance A Majestade do Xingu, em 1998, entre outras honrarias.

O espírito generoso de Moacyr Scliar teve chance de ser testado em um episódio de repercussão internacional: o escritor canadense Yann Martel recebeu o Booker Prize em 2002 pelo seu romance "A Vida de Pi", claramente inspirado no livro de Scliar "Max e os felinos".

Ambos os livros tratam do mesmo tema: um náufrago num escaler diante de animais: no de Scliar, um jaguar, no de Martell, um tigre e outros bichos. Para Moacyr Scliar, o jaguar era a imagem de um poder absoluto e irracional. "Como foi o poder do nazismo, por exemplo. Ou, numa escala bem menor, o poder da ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964".

O canadense Martel dá uma conotação religiosa à imagem. Ao contrário do que a maioria esperava, Scliar não o processou por plágio, e em um texto que revela pontos importantes de seu pensamento, como ser humano e como escritor, que aparece como introdução nas edições de "Max e os felinos" ele explica por que:

"A pergunta que mais me faziam ? e, nos Estados Unidos, faziam-me de forma insistente ? dizia respeito a um processo judicial. Algo para o qual eu não tinha a menor disposição. Não só porque demandaria tempo e energia, como também porque minha atitude não era, e nem nunca foi, litigante. (...) Se, ao tempo em que começou a escrever seu livro, Yann Martel tivesse entrado em contato comigo dizendo que queria aproveitar a idéia, eu teria concordado, e de bom grado.

Ele não o fez, o que pode ser considerado inadequado? mas, ilegal? Eu relutava em ver a coisa dessa maneira".

Se é possível definir uma característica principal da literatura de Moacyr Scliar, essa seria o humanismo. E, para mim, nenhum outro livro reflete tão bem esse seu sentimento do que "Os Voluntários", de 1982, que narra a história da tentativa frustrada de um moribundo para ver Jerusalém antes de morrer, e a solidariedade de amigos, a bordo de um velho rebocador que sai de Porto Alegre com destino ao porto de Haifa, em Israel, numa viagem utópica que mal se inicia.

Na zona portuária de Porto Alegre, entre as décadas de 1930 e 1970, desenrola-se a história de um grupo de amigos, vizinhos do bairro, o narrador Paulo, de pais imigrantes portugueses chegados ao Brasil em 1935, proprietários do bar-restaurante Lusitânia.

Benjamim, amigo de infância de Paulo, filho dos proprietários de uma loja próxima à Lusitânia, sofre de problemas afetivos derivados da superproteção materna, marca do folclore judaico, é obcecado por Jerusalém, obsessão que herdou dos pais, imigrantes judeus nascidos na Polônia. Sua obsessão doentia acaba lhe provocando um câncer.

Samir é um palestino cristão oriundo de Jerusalém, comerciante ambicioso, que chega a Porto Alegre depois de 1967, em conseqüência da Guerra dos Seis Dias. Monta seu negócio ao lado da loja de Benjamim, o que estimula a reprodução do conflito do Oriente Médio na pitoresca Rua Voluntários da Pátria, que Paulo tem que mediar.

O projeto utópico desde o princípio está destinado ao fracasso, e é frustrado de maneira insólita: ao zarpar o rebocador é atacado por uma lancha onde está Cachorrão, o gigolô de Elvira, amante de Paulo, que quer impedir que ela siga viagem com o grupo.

Uma verdadeira batalha naval acontece, e o rebocador "Voluntários" vai a pique, com vários mortos, entre eles Benjamim. Para completar a bizarrice do episódio, e como estamos nos anos 1970 do regime militar, a polícia confunde a tosca expedição com um plano subversivo de comunistas.

É este grande escritor que sucedo na cadeira 31, mas, volto a ressaltar, não substituo. É esse homem generoso que hoje homenageamos na pessoa de sua viúva Judith e do seu filho Roberto aqui presentes.

Minhas amigas, meus amigos,

É como jornalista que me apresento a esta Casa, um jornalista que acredita ser um imperativo ético da profissão a responsabilidade com o cidadão.

O filósofo alemão Jürgen Habermas se refere à dupla função que a imprensa de qualidade desempenha: atender a demanda por informação e formação. Ele ressalta que para o leitor enquanto cidadão, a imprensa de qualidade, que ele chama de "jornalismo argumentativo", desempenha um papel de "liderança".

É como jornalista comprometido com esses princípios que me apresento nesta Casa, e é exatamente por isso que desejo destacar a questão ética, base do êxito no jornalismo.

É nossa atribuição fazer com que o Estado conheça os desejos e intenções da Nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado.

"Um bom jornal é uma nação conversando consigo mesma", na definição do teatrólogo inglês Arthur Miller.

Para nosso confrade Rui Barbosa "a imprensa é a vista da nação. Através dela a mão acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça".

O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como um cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar. "Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução", escreveu ele.

No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação. Os jornais nasceram no começo do século 19, com a Revolução Industrial e a democracia representativa. Formam parte das instituições da democracia moderna. A "opinião pública" surgiu através principalmente da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista, e legitimar suas reivindicações no campo político.

Não é à toa, portanto, que o surgimento da "opinião pública" está ligado ao surgimento do estado moderno. O jornalista espanhol José Luis Cebrian, diretor do "El País", talvez o jornal mais influente hoje da Europa, considera que os jornais perderam a exclusividade da formação da opinião pública, com o surgimento de novas tecnologias de comunicação, mas continuam sendo um "contrapoder", com uma enorme influência, importantes para a institucionalização democrática dos países.

É o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático. E é nos jornais que ainda se abriga maior parte do jornalismo de qualidade.

O jornalismo profissional tem uma estrutura, uma deontologia, uma forma profissional de colher e checar informações que a vasta maioria dos blogueiros não tem.

Da mesma maneira que a internet e as novas mídias sociais permitem que as informações circulem mais largamente, com versões de várias fontes, elas também levam as reportagens da grande imprensa aos recantos mais longínquos do país.

As reportagens da grande imprensa são replicadas no Facebook, no Twitter e em outras mídias sociais, amplificando sua repercussão.

Exatamente por isso, a questão ética está em primeiro plano. O problema da ética jornalística tem uma complicação própria, o fato de que enorme parcela da informação de interesse público atinge a privacidade de alguém.

Decisões irresponsáveis e levianas produzem o sensacionalismo, os escândalos gratuitos e, em pouco tempo, a desmoralização da imprensa.

A gravidade do que aconteceu no "News of the World" na Inglaterra, com escutas ilegais e chantagens, liga perigosamente a prática de crimes comuns ao jornalismo, o que é inaceitável e põe em risco a própria essência da liberdade de expressão.

O jornalismo, instrumento da democracia, não pode se transformar em atividade criminosa. É uma decisão ética quotidiana e obrigatória do jornalista determinar se o interesse público é servido ou não pela invasão da privacidade de alguém.

Vivemos novos desafios, como o de explorar uma intensa variedade de meios de levar informação ao leitor (e a oferta de informação só tende a crescer) sem ao mesmo tempo sufocá-lo com informação demais.

"A desinformação vem da profusão da informação, de seu encantamento, de sua repetição em círculos", dizia o filósofo francês Jean Baudrillard.

Nicholas Carr, ex-diretor da "Harvard Business Review", é mais pessimista. Para ele, a internet permeia de tal modo o cotidiano que estaríamos caminhando para uma capacidade cada vez maior de consumir informação fragmentada e desconexa. Mais informação e menos conhecimento, e, sobretudo, pouca reflexão. A internet estaria induzindo a um pensamento raso.

Para o Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, por outro lado, a revolução digital que estamos vivendo significa uma transformação tão grande em nossa vida cultural e na maneira de operar do cérebro humano quanto a descoberta da imprensa por Gutenberg no século 15, que generalizou a leitura de livros, até então exclusiva de uma minoria insignificante de clérigos, intelectuais e aristocratas.

Como todos os jornalistas no mundo, nós na América Latina enfrentamos os novos desafios do mundo multimídia. A Revolução Digital está transformando profundamente o mundo em que vivemos e tem como impacto mais importante a repartição de poder dos meios de comunicação de massa com os indivíduos.

A sociedade civil global que está se formando, segundo a definição do sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern Califórnia, nos Estados Unidos tem agora os meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa.

Como ficou demonstrado nas recentes manifestações populares que desaguaram na Primavera Árabe ou na vigorosa ação dos "indignados" na Espanha e outros países europeus.

Aqui no Brasil, estamos vendo os primeiros efeitos, ainda incipientes, dessas mobilizações pelas redes sociais contra a corrupção.

Ao mesmo tempo, na América Latina espalha-se pela região um movimento de contenção da liberdade de imprensa em diversos países, como Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador, onde televisões, rádios e jornais vão sendo fechados sob os mais variados pretextos, e muitos outros são ameaçados com diversas formas de pressão, seja financeira seja através de medidas judiciais.

No Brasil, uma exceção em um continente cada vez mais dominado por governos autoritários ou simples ditaduras, também enfrentamos ameaças à liberdade de expressão. Os mesmos grupos tentam mais uma vez aprovar no Congresso uma legislação que controle os meios de comunicação, embora a própria Presidente Dilma já tenha declarado que a liberdade de expressão é fundamental na democracia.

O jornalismo é uma forma de conhecimento, uma forma de apreensão da realidade.

É a verdade imediata, o primeiro indício de verdade, Estará sempre longe, muito longe, de encontrar toda a verdade. Mas buscá-la é o seu propósito.

Trago comigo um exemplo de como o jornalismo pode auxiliar essa busca da verdade. Em 5 de maio de 1981, eu escrevia a coluna política do Globo chamada "Política Hoje Amanhã", e tive acesso à informação de que o laudo da explosão do Riocentro, ocorrida dias antes, no dia 1 de Maio, havia confirmado a presença de outras duas bombas no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado.

A notícia foi manchete do Globo, deixando claro que a versão oficial de que a bomba fora colocada no carro por terroristas de esquerda apenas encobria a verdade da tentativa do atentado.

Dezoito anos depois, em 1999, O GLOBO deu outro "furo", que provocou a reabertura do caso. A série de reportagens de Ascânio Seleme, Chico Otavio e Amaury Ribeiro Jr. ganhou o Prêmio Esso de Reportagem daquele ano e reabriu o caso, transformando o Capitão Wilson Machado e o sargento Guilherme Pereira do Rosário de vítimas em réus.

O crime prescrevera, mas a verdade estava restabelecida. Eu era o diretor de redação do Globo naquela ocasião, e senti como se um ciclo histórico tivesse sido fechado, com a minha participação.

Iniciei-me nesse ofício aos 18 anos, e ainda era estagiário quando trabalhei na edição extra do Globo que anunciou a chegada do homem à Lua. Fui à rua para fazer o que o jargão da profissão chama de "povo fala": colher opiniões dos cidadãos sobre aquele grande feito da

Humanidade.

Era uma pequena tarefa, que abracei com enorme entusiasmo, já com a consciência de que estava participando de algo realmente importante, ajudando, de algum modo, a registrar a História, a produzir conhecimento.

É engraçado quando leio algum livro sobre a missão heróica de Neil Armistrong, Edwin Aldrin e Michael Collins, e me deparo com o registro de que muitos acreditavam então que tudo não passava de uma encenação. O Globo daquele dia já registrava essa descrença.

De lá para cá, como repórter ou editor, sempre com a ajuda valorosa de muitos colegas, cobri ativamente os grandes acontecimentos da História do Brasil e do mundo. Acompanhei como repórter credenciado no Palácio do Planalto o passo a passo da abertura política do Governo Geisel, que culminou com a anistia no Governo Figueiredo, que também acompanhei de perto como diretor da sucursal do Globo em Brasília.

Vieram, então, a luta por eleições diretas, a eleição de Tancredo Neves, sua tragédia pessoal e política, que deixou a nosso hoje Decano, José Sarney, a tarefa de, com todas as dificuldades, garantir a transição para a democracia, tarefa fundamental que proporcionaria a realização da primeira eleição democrática para presidente depois da ditadura. E cobri também o impeachment, também democrático e dentro da lei, do primeiro presidente eleito.

Acompanhei, com preocupação, o fracasso de cada plano econômico que visava dar fim à chaga da inflação, um mal que parecia não ter fim. Mas que se exauriu graças ao Plano Real, que estabilizando a moeda, permitiu organizar o país de modo a colocá-lo no rumo de resgatar da miséria alguns milhões de brasileiros, tarefa que vem sendo levada a cabo pelos últimos governos, a começar pelo de Fernando Henrique, seguido pelo de Lula, e agora, o da presidente Dilma.

No campo internacional, cobri ou editei revoluções, golpes de estado, atentados, guerras, tragédias naturais, mas também o avanço da ciência, com benefícios incontáveis para o ser humano.

Uma das primeiras páginas que fechei com o espanto de quem registra e tenta entender o mundo em mudança radical foi a que estampou a queda do Muro de Berlim, em 1989, que pôs em movimento o último ato para o fim do bloco comunista.

Teria aquela edição um gosto especial para mim porque, dois anos depois, eu estaria no meio de uma pós graduação em Stanford de política internacional, aprendendo história em tempo real, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos que levaram ao fim da União Soviética. O interessante é que as aulas, ao lado de livros, usavam como base para o estudo as edições diárias do New York Times.

Em 2008, acompanhei vivendo em Nova York a campanha histórica para a presidência dos Estados Unidos vencida por Barack Obama, e a crise financeira mundial iniciada com a quebra do banco Lehman Brothers.

Enfim, se acompanhar os fatos tão de perto me deu a certeza e o otimismo de que não há entrave que não possa ser superado, deu-me também a convicção de que as conquistas só perduram à custa de muita vigilância.

Se, hoje, no exercício diário do meu ofício, vivo a chamar a atenção para os riscos de retrocessos, quando os vejo no horizonte, não é por pessimismo ou militância: é porque aprendi no dia a dia de minha profissão que o jornalismo tem por obrigação defender valores sem os quais não pode existir, o maior deles a liberdade.

É só ela que nos permite produzir o conhecimento necessário para que os povos se autogovernem, em sistemas plenamente democráticos.

O jornalismo, contudo, exerce essa função também nos acontecimentos da vida cotidiana, prosaicos, do país e do mundo. Se mencionei aqueles que marcaram a História, foi apenas porque eles vêm mais facilmente à cabeça de todos nós.

Mas o registro de todos os fatos, mesmo os mais comezinhos, e a análise deles são fundamentais para que nós, cidadãos, nos movamos em sociedade: o bueiro que explode, o crime de grande repercussão, a nova praça que se inaugura, a cidade, o país e o mundo em seu fluir ininterrupto.

A especificidade de nossa profissão é que cobrimos os grandes e os

pequenos eventos, com os mesmos propósitos: conhecer, informar, contextualizar, para que todos possam formar as suas convicções e viver em harmonia democrática.

Se lanço mão das situações que vivi é para mostrar o que penso do jornalismo, definir as suas características, o seu modo de ser e de fazer. E também para dizer que, embora não seja mais aquele menino que foi às ruas colher as reações à chegada do homem à lua, ao iniciar minha vida nesta Academia, meu sentimento é o mesmo de 42 anos atrás: entusiasmo diante de uma jornada que cobrará muito de mim, mas também a consciência de que agora faço parte de uma Casa cujo propósito é aquele que busquei a vida inteira, com meu ofício: produzir conhecimento e difundi-lo, para o bem de nosso país, de nossa cultura.

Prometo honrar a confiança que depositaram em mim."

sábado, 27 de agosto de 2011

O Poderoso Chefão

VEJA, 27 de agosto de 2011


O ex-ministro José Dirceu mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma

Há muitas histórias em torno das atividades do ex-ministro José Dirceu. Veja revela a verdade sobre uma delas: mesmo com os direitos políticos cassados, sob ameaça de ir para a cadeia por corrupção, o chefe da quadrilha do mensalão continua o todo-poderoso comandante do PT. Dirceu é um homem de negócios, mas continua a ser o homem do partido.

O “ministro”, como ainda é tratado em tom solene pelos correligionários, mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com senadores, deputados, o presidente da maior estatal do país e até ministro de estado — reuniões que acontecem em horário de expediente, como se ali fosse uma repartição pública.

E agora com um ingrediente ainda mais complicador: ele usa o poder e toda a influência que ainda detém no PT para conspirar contra o governo Dilma — e a presidente sabe disso.

O que leva personagens importantes e respeitáveis, como os que aparecem nas imagens que ilustram esta reportagem, a deixar seu local de trabalho para se reunir em um quarto de hotel com o homem acusado de chefiar uma quadrilha responsável pelo maior esquema de corrupção da história do Brasil? Alguns deles apresentam seus motivos: amizade, articulações políticas, análise econômica, às vezes até o simples acaso. Há quem nem sequer se lembre do encontro.

Outros preferem não explicar. Depois de viver na clandestinidade durante parte do regime militar, o ex-ministro José Dirceu se tornou habitué dos holofotes com a redemocratização do país. Foi fundador e presidente do PT, elegeu-se três vezes deputado federal e comandou a estratégia que resultou na eleição de Lula para a Presidência da República. Como recompensa, foi alçado ao posto de ministro-chefe da Casa Civil.

Foi um período de ouro para ele. Dirceu comandava as articulações no Congresso, negociava indicações de ministros para tribunais superiores, decidia o preenchimento de cargos e influenciava os mais apetitosos nacos da administração federal, como estatais, bancos públicos e fundos de pensão. Dirceu se jactava da condição de “primeiro-ministro” e alimentava o próprio mito de homem poderoso.

Sua glória durou até que ele fosse abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, quando se descobriu que chefiava também um bando de vigaristas que assaltava os cofres públicos.

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Desde então, tudo em que Dirceu se envolve é sempre enevoado por suspeitas. Oficialmente, ele ganha a vida como um bem-sucedido consultor de empresas instalado em São Paulo. Mas é em Brasília, na mais absoluta clandestinidade outra vez, que ele continua a exercer o seu principal talento.

A 3 quilômetros do Palácio do Planalto, Dirceu mostra que suas garras estão afiadas. Ainda é chamado de “ministro”, mantém um concorrido gabinete num quarto de hotel, tem carro à disposição, motorista, secretário e, mais impressionante, sua agenda está sempre recheada de audiências com próceres da República — ministros, senadores e deputados.

As autoridades é que vão a José Dirceu. Essa inversão de papéis poderia se explicar por uma natural demonstração de respeito pelos tempos em que ele era governo. Não é. É uma efetiva demonstração de que o chefão ainda é poderoso.

Dirceu tenta recuperar o prestígio político que tinha no governo Lula, usando como arma muitos aliados que ainda lhe beijam o rosto. Convoca-os como soldados, quando necessário, numa tentativa de pressionar a presidente Dilma a atender a suas demandas. Ou torná-la refém por meio da pressão dos partidos.

Esse trabalho de guerrilha — e, em alguns momentos, de evidente conspiração — chegou ao paroxismo durante a crise que resultou na queda de Antonio Palocci da Casa Civil.

Naquela ocasião, início de junho, Dirceu despachou diretamente de seu bunker instalado na área vip de um hotel cinco-estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas. Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Antonio Palocci e durante as quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão.

Articulação minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais de uma conspiração de Dirceu e do seu grupo para influir nos acontecimentos que ocorriam naquela semana — acontecimentos que, descobre-se agora, contavam com a participação de figuras do próprio governo.

Em 8 de junho, numa quarta-feira, Dirceu recebeu no hotel a visita do ministro do Desenvolvimento, o petista Fernando Pimentel. Conversaram por 28 minutos. Sobre o quê? Pimentel diz não se lembrar da pauta nem de quem partiu a iniciativa do encontro. Admite, no entanto, falar com frequência com o ex-ministro sobre o contexto brasileiro.

É uma estranha aproximação, mas que encontra explicação na lógica que une e separa certos políticos de acordo com o interesse do momento. Próximo a Dilma desde quando era estudante, Pimentel defendeu, durante a campanha, a ideia de que a então candidata do PT se afastasse ao máximo de Dirceu.

Pimentel e Dirceu estavam em campos opostos. Naquela ocasião, o atual ministro do Desenvolvimento nutria o sonho de se tornar o futuro chefe da Casa Civil.

Perdeu a chance depois de Veja revelar que funcionários contratados por ele para trabalhar na campanha montaram um grupo de inteligência cujas tarefas envolviam, entre outras coisas, espionar e fabricar dossiês contra
os adversários, principalmente o concorrente do PSDB à Presidência, José Serra.

No novo governo, Pimentel foi preterido na Casa Civil em favor de Palocci. O mesmo Palocci que, no primeiro mandato de Lula, disputava com Dirceu o status de homem forte do governo e de candidato natural à Presidência da República.

Um cacique petista tenta explicar a união recente de Pimentel com José Dirceu: “No PT, é comum adversários num determinado instante se aliarem mais à frente para atingir um objetivo comum. Isso ocorre quando há uma conjução de interesses.”

Será que Pimentel queria se vingar de Palocci, a quem considerava um rival dentro do governo?

Dois dias antes, na segunda-feira, Dirceu esteve com José Sergio Gabrielli, presidente da Petrobras. Gabrielli enfrenta um processo de fritura desde o fim do governo Lula. A presidente Dilma não cultiva nenhuma simpatia por ele. Palocci pretendia tirar Gabrielli do comando da estatal.

Gabrielli precisava — e precisa — do apoio, sobretudo do PT, para se manter no cargo. Dirceu é consultor de empresas do setor de petróleo e gás. Precisa manter-se bem informado no ramo para fazer dinheiro. É o famoso encontro da fome com a vontade de comer — ou conjunção de interesses.

O presidente da Petrobras, que trabalha no Rio de Janeiro, chegou à suíte ocupada pelo ex-ministro da Casa Civil, no 16º andar do hotel, ciceroneado por um ajudante de ordens. Permaneceu lá exatos trinta minutos. Ao sair, o presidente da Petrobras, que chegou ao quarto de mãos vazias, carregava alguns papeis consigo.

Perguntado sobre a visita, Gabrielli limitou-se a desconversar: “Sou amigo dele há muito tempo, e não tenho que comentar isso com ninguém”.

Naquela noite de segunda-feira, a demissão de Palocci já estava definida. O ministro não havia conseguido explicar a incrível fortuna que acumulou em alguns meses prestando serviços de consultoria — a mesma atividade de Dirceu.

Na terça-feira, horas antes da demissão de Palocci, Dirceu recebeu para uma conversa de 54 minutos três senadores do PT: Delcídio Amaral, Walter Pinheiro e Lindbergh Farias. Esse último conta que foi ele quem pediu a
audiência.

Qual assunto? Falaram do furacão que assomava à porta da Casa Civil. “O ministro Dirceu nunca falou um ‘ai’ contra o Palocci. Pelo contrário, sempre tentou resolver a crise com a ajuda da nossa bancada”, garante Farias.

De fato, a bancada foi decisiva — mas para sepultar de vez a tentativa de Palocci de salvar a própria pele. Logo após o encontro com Dirceu, os três senadores foram a uma reunião da bancada do PT e recusaram-se a assinar uma nota em defesa do então ministro-chefe da Casa Civil. Alegaram que a proposta não havia sido combinada com o Planalto.

Existiam outros motivos para a falta de entusiasmo: o trio também estava insatisfeito com Palocci. Delcídio reclamava do fato de não conseguir emplacar aliados em representações de órgãos federais em Mato Grosso do
Sul, seu estado natal e berço político. “Num momento tenso como aquele, fui conversar com alguém que está sempre bem informado sobre os acontecimentos”, explicou Delcídio sobre o encontro com o poderoso chefão.

Pinheiro estava contrariado com a demissão de um petista do comando da Polícia Rodoviária Federal na Bahia. “O encontro foi para fornecer material para que ele publicasse um artigo sobre o projeto de lei que trata da produção audiovisual no país”, disse ele.

Lindbergh Farias, por seu turno, ainda digeria as tentativas fracassadas de ser recebido por Palocci. No fim da tarde de terça-feira, o ministro-chefe da Casa Civil entregou sua carta de demissão. E teve início a disputa pela sua sucessão.

Quando Gleisi Hoffmann já havia sido anunciada como substituta de Palocci, no mesmo dia 7 de junho, Dirceu recebeu o deputado petista Devanir Ribeiro. Foram 25 minutos de conversa. Já era sabido que, no rastro da saída de Palocci, Luiz Sérgio, um aliado de Dirceu, deixaria o ministério das Relações Institucionais.

Estava deflagrada a campanha para sucedê-lo — e Dirceu queria emplacar no cargo o deputado Cândido Vaccarezza, líder do governo na Câmara.

Procurado por Veja, Devanir, que é compadre do presidente Lula, negou que tivesse ido ao hotel conversar com Dirceu. Um lapso de memória, como deixa claro a imagem nesta reportagem. “Faz muito tempo que eu não o vejo.”

Na quarta-feira, 8 de junho, pela manhã, as articulações de Dirceu continuaram a pleno vapor. Ele recebeu o próprio Vacarezza. Durante 25 minutos, trataram, segundo o líder, do congresso do PT que será realizado em setembro.

“Converso com o Dirceu com regularidade. Como o caso do Palocci era palpitante, é possível que tenha sido abordado, mas não foi o tema central”, afirma o deputado — que, no início do governo Dilma, chegou a dar entrevistas como o futuro presidente da Câmara, mas acabou convencido a desistir de disputar o cargo por ter perdido apoio dentro do PT.

A agenda do chefão não se limita aos companheiros de partido. Duas horas depois do encontro com Vacarezza, foi a vez de o senador peemedebista Eduardo Braga adentrar o hotel.

Segundo o parlamentar, ele e Dirceu se encontraram por obra do acaso, no lobby, uma coincidência. O senador conta que aproveitou a coincidência para auscultar os ânimos do PT sobre o projeto do novo Código Florestal: “Queria saber como o PT se posicionaria. Ninguém pode negar que a máquina partidária petista foi arquitetada e construída pelo Dirceu. Ele respira o partido”.

O PMDB também respira poder. Com o apoio de Dirceu, peemedebistas e petistas fecharam um acordo para pressionar o Planalto a indicar Vacarezza ao cargo de ministro de Relações Institucionais no lugar de Luiz Sérgio. A substituição nessa pasta foi realizada três dias depois da queda de Palocci.

Informada do plano de Dirceu, a presidente Dilma desmontou-o ao nomear para o cargo a ex-senadora Ideli Salvatti. A presidente já havia sido advertida por assessores do perigo de delegar poderes a companheiros que orbitam em torno de Dirceu.

Mas Dilma também conhece bem os caminhos da guerrilha política. Chamada de “minha camarada de armas” por ele quando lhe foi passado o comando da Casa Civil, em 2005, a presidente não perde de vista os passos do chefão. Como? Pedindo a algumas autoridades que visitam Dirceu em Brasília informações sobre suas ambições.

“A Dilma e o PT, principalmente o PT afinado com o Dirceu, vivem uma relação de amor e ódio. Mas hoje você não pode imaginar um rompimento entre eles”, diz um interlocutor de confiança da presidente e do ex-ministro.

E amanhã? Se Dilma se consolidar como uma presidente popular e, mais perigoso, um entrave a um novo mandato de Lula, o tal rompimento entra no campo das possibilidades. “Nunca a turma do PT foi tão lulista como hoje. Imagine em 2014”, afirma um cardeal do partido. Ele é mais um, como Dirceu, insatisfeito com o fato de a legenda não ter conseguido, como previra o ex-ministro, impor-se à presidente da República.

Dilma está resistindo bem. Uma faxina menos visível é a que ela está fazendo nos bancos públicos. Aos poucos, vem substituindo camaradas ligados a Dirceu por gente de sua confiança. E o chefão não está nada contente com isso. Tanto que tem alimentado o noticiário com denúncias contra pessoas muito próximas à presidente, naquele tipo de patriotismo interessado que lhe é peculiar.

Procurado por Veja, Dirceu não respondeu às perguntas que lhe foram feitas. A suíte reservada permanentemente ao “ministro” custa 500 reais a diária. Para chegar de elevador, é preciso um cartão de acesso especial. Cada quarto do andar recebe uma única cópia.

Qualquer visita ao “ministro”, portanto, tem de ser conduzida ao andar. Esse trabalho de cicerone é feito por Alexandre Simas de Oliveira, um cabo da Aeronáutica, que foi assessor de Dirceu na Câmara dos Deputados até ele ter o mandato cassado.

Hoje, o cicerone é empregado do escritório de advocacia Tessele & Madalena, que tem como um dos donos outro ex-assessor de Dirceu, o advogado Hélio Madalena. O advogado já foi flagrado uma vez de caso com a máfia — a russa. Escutas feitas pela Polícia Federal mostraram que, na condição de assessor da Casa Civil, ele fazia lobby para conceder asilo político no Brasil ao magnata russo Boris Berezovski (mafioso acusado de corrupção e assassinato).

E Madalena foi flagrado outra vez na semana passada. É o seu escritório que paga a fatura do “gabinete” de José Dirceu. Na última quinta-feira, depois de ser indagado sobre o caso, Madalena instou a segurança do hotel Naoum a procurar uma delegacia de polícia para acusar o repórter de Veja de ter tentado invadir o apartamento que seu escritório aluga e, gentilmente, cede como “ocupação residencial” a José Dirceu.

O jornalista esteve mesmo no hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades. Tentando descobrir por que o nome dele não consta da relação de hóspedes. Tentando descobrir por que uma empresa de advocacia paga a fatura de sua misteriosa “residência” em Brasília.

Enfim, tentando mostrar a verdade sobre as atividades de um personagem que age sempre na sombra. E conseguiu. Mas a máfia não perdoa.