segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Leia a íntegra da carta aberta de Marina silva, do PV, aos candidatos à presidência da República

Carta Aberta aos Candidatos à Presidência da República


São Paulo, 17 de outubro de 2010

Prezada Dilma Roussef,
Prezado José Serra,

Agradeço, inicialmente, a deferência com que ambos me honraram
ao manifestar interesse em minha colaboração e a atenção que
dispensaram às propostas e ideias contidas na “Agenda para um
Brasil Justo e Sustentável” que nós, do Partido Verde, lhes enviamos
neste segundo turno das eleições presidenciais de 2010.
Embora seus comentários à Agenda mostrem afinidades importantes
com nosso programa, gostaríamos que avançassem em clareza e
aprofundamento no que diz respeito aos compromissos. Na verdade,
entendemos que somos o veículo para um diálogo de ambos com os
eleitores a respeito desses temas. Nesse sentido, mantemo-nos na
posição de mediadores, dispostos a continuar colaborando para que
esse processo alcance os melhores resultados.
Aos contatos que tivemos e aos documentos que compartilhamos,
acrescento esta reflexão, que traz a mesma intenção inicial de minha
candidatura: debater o futuro do Brasil.
Quero afirmar que o fato de não ter optado por um alinhamento neste
momento não significa neutralidade em relação aos rumos da
campanha. Creio mesmo que uma posição de independência,
reafirmando ideias e propostas, é a melhor forma de contribuir com o
povo brasileiro.
Já disse algumas vezes que me sinto muito feliz por, aos 52 anos,
estar na posição de mantenedora de utopias, como os brasileiros que
inspiraram minha juventude com valores políticos, humanos, sociais e
espirituais. Hoje vejo que utopias não são o horizonte do impossível,
mas o impulso que nos dá rumo, a visão que temos, no presente, do
que será real e terreno conquistado no futuro.
É com esse compromisso da maturidade pessoal e política e com a
tranquilidade dada pelo apreço e respeito que tenho por ambos que
ouso lhes dirigir estas palavras.
Quando olhamos retrospectivamente a história republicana do Brasil,
vemos que ela é marcada pelo signo da dualidade, expressa sempre
pela redução da disputa política ao confronto de duas forças
determinadas a tornar hegemônico e excludente o poder de Estado.
Republicanos X monarquistas, UDN X PSD, MDB X Arena e, agora,
PT X PSDB.
Há que se perguntar por que PT e PSDB estão nessa lista. É uma
ironia da História: dois partidos nascidos para afirmar a diversidade
da sociedade brasileira, para quebrar a dualidade existente à época
de suas formações, se deixaram capturar pela lógica do embate entre
si até as últimas consequências.
Ambos, ao rejeitarem o mosaico indistinto representado pelo guardachuva
do MDB, enriqueceram o universo político brasileiro criando
alternativas democráticas fortes e referendadas por belas histórias
pessoais e coletivas de lutas políticas e de ética pública.
Agora, o mergulho desses partidos no pragmatismo da antiga lógica
empobrece o horizonte da inadiável mudança política que o país
reclama. A agressividade de seu confronto pelo poder sufoca a
construção de uma cultura política de paz e o debate de projetos
capazes de reconhecer e absorver com naturalidade as diferentes
visões, conquistas e contribuições dos diferentes segmentos da
sociedade, em nome do bem-comum.
A permanência dessa dualidade destrutiva é característica de um
sistema politico que não percebe a gravidade de seu descolamento
da sociedade. E que, imerso no seu atraso, não consegue dialogar
com novos temas, novas preocupações, novas soluções, novos
desafios, novas demandas, especialmente por participação política.
Paradoxalmente, PT e PSDB, duas forças que nasceram inovadoras
e ainda guardam a marca de origem na qualidade de seus quadros,
são hoje os fiadores desse conservadorismo renitente que coloniza a
política e sacrifica qualquer utopia em nome do pragmatismo sem
limites.
Esse pragmatismo, que cada um usa como arma, é também a
armadilha em que ambos caem e para a qual levam o país. Arma-se
o eterno embate das realizações factuais, da guerra de números e
estatísticas, da reivindicação exclusivista de autoria quase sempre
sustentada em interpretações reducionistas da história.
Na armadilha, prende-se a sociedade brasileira, constrangida a ser
apenas torcida quando deveria ser protagonista, a optar por pacotes
políticos prontos que pregam a mútua aniquilação.
Entendo, porém, que o primeiro turno de 2010 trouxe uma reação
clara a esse estado de coisas, um sinal de seu esgotamento. A
votação expressiva no projeto representado por minha candidatura e
de Guilherme Leal sinaliza, sem dúvida, o desejo de um fazer político
diferente.
Se soubermos aproveitá-la com humildade e sabedoria, a realização
do segundo turno, tendo havido um terceiro concorrente com quase
20 milhões de votos, pode contribuir decisivamente para quebrar a
dualidade histórica que tanto tem limitado os avanços políticos em
nosso país.
Esta etapa eleitoral cria uma oportunidade de inflexão para todos,
inclusive ou principalmente para vocês que estão diante da chance
de, na Presidência da República, liderar o verdadeiro nascimento
republicano do Brasil.
Durante o primeiro turno, quando me perguntavam sobre como iria
compor o governo e ter sustentação no Congresso Nacional, sempre
dizia que, em bases programáticas, iria governar com os melhores de
cada partido. Peço que vejam na votação concedida à candidatura do
PV algo que ultrapassa meu nome e que não se deixem levar por
análises ligeiras.
Esses votos não são uma soma indistinta de pendores setoriais. Eles
configuram, no seu conjunto, um recado político relevante. Entendoos
como expressão de um desejo enraizado no povo brasileiro de
sair do enquadramento fatalista que lhe reservaram e escolher outros
valores e outros conteúdos para o desenvolvimento nacional.
E quem tentou desqualificar principalmente o voto evangélico que me
foi dado, não entendeu que aqueles com quem compartilho os
valores da fé cristã evangélica, vão além da identidade espiritual.
Sabem que votaram numa proposta fundada na diversidade, com
valores capazes de respeitar os diferentes credos, quem crê e quem
não crê. E perceberam que procurei respeitar a fé que professo, sem
fazer dela uma arma eleitoral.
Os exemplos de cristãos como Martin Luther King e Nelson Mandela
e do hindu Mahatma Ghandi mostram que é possível fazer política
universal com base em valores religiosos. São inspiração para o
mundo. Não há porque discriminar ou estigmatizar convicções
religiosas ou a ausência delas quando, mesmo diferentes, nos
encontramos na vontade comum de enfrentar as distorções que
pervertem o espaço da política. Entre elas, a apropriação material e
imaterial indevida daquilo que é público, seja por meio de corrupção
ou do apego ao poder e a privilégios; a má utilização de recursos e
de instrumentos do Estado; e o boicote ao novo.
Assim, ao contrário de leituras reducionistas, o apoio que recebi dos
mais diversos setores da sociedade revela uma diferença
fundamental entre optar e escolher. Na opção entre duas coisas précolocadas
e excludentes, o cidadão vota “contra” um lado, antes
mesmo de ser a favor de outro. Na escolha, dá-se o contrário: o voto
se constrói na história, na ampliação da cidadania, na geração de
novas alternativas em uma sociedade cada vez mais complexa.
A escolha, agora, estende-se a vocês. É a atitude de vocês, mais que
o resultado das urnas, que pode demarcar uma evolução na prática
política no Brasil. Podemos permanecer no espaço sombrio da
disputa do poder pelo poder ou abrir caminho para a política
sustentável que será imprescindível para encarar o grande desafio
deste século, que é global e nacional.
Não há mais como se esconder, fechar os olhos ou dar respostas
tímidas, insuficientes ou isoladas às crises que convergem para a
necessidade de adaptar o mundo à realidade inexorável ditada pelas
mudanças climáticas. Não estamos apenas diante de fenômenos da
natureza.
O mega fenômeno com o qual temos que lidar é o do encontro da
humanidade com os limites de seus modelos de vida e com o grande
desafio de mudar. De recriar sua presença no planeta não só por
meio de novas tecnologias e medidas operacionais de sobrevivência,
mas por um salto civilizatório, de valores.
Não se trata apenas de ter políticas ambientais corretas ou a
incentivar os cidadãos a reverem seus hábitos de consumo. É
necessária nova mentalidade, novo conceito de desenvolvimento,
parâmetros de qualidade de vida com critérios mais complexos do
que apenas o acesso crescente a bens materiais.
O novo milênio que se inicia exige mais solidariedade, justiça dentro
de cada sociedade e entre os países, menos desperdício e menos
egoísmo. Exige novas formas de explorar os recursos naturais, sem
esgotá-los ou poluí-los. Exige revisão de padrões de produção e um
fortíssimo investimento em tecnologia, ciência e educação.
É esse, em síntese, o sentido do que chamamos de Desenvolvimento
Sustentável e que muitos, por desconhecimento ou má-fé, insistem
em classificar como mera tentativa de agregar mais alguns cuidados
ambientais ao mesmo paradigma vigente, predador de gente e
natureza.
É esse mesmo Desenvolvimento Sustentável que não existirá se não
estiver na cabeça e no coração dos dirigentes políticos, para que
possa se expressar no eixo constitutivo da força vital de governo.
Que para ganhar corpo e escala precisa estar entranhado em
coragem e determinação de estadista. Que será apenas discurso
contraditório se reduzido a ações fragmentadas logo anuladas por
outras insustentáveis, emanadas do mesmo governo.
E, finalmente, é esse o Desenvolvimento Sustentável cujos objetivos
não se sustentarão se não estiver alicerçado na superação da
inaceitável, desumana e antiética desigualdade social. Esta é ainda a
marca mais resistente da história brasileira em todos os tempos, em
que pesem os inegáveis avanços econômicos dos últimos 16 anos,
que nos levaram à estabilidade econômica, e das recentes
conquistas sociais que tiraram da linha da pobreza mais de 24
milhões de pessoas e elevaram à classe média cerca de 30 milhões
de pessoas.
A sociedade, em sua sábia intuição, está entendendo cada vez mais
a dimensão da mudança e o compromisso generoso que ela implica,
com o país, com a humanidade e com a vida no Planeta. Os votos
que me foram dados podem não refletir essa consciência como
formulação conceitual, mas estou certa de que refletem o sentimento
de superação de um modelo. E revelam também a convicção de que
o grande nó está na política porque é nela que se decide a vida
coletiva, se traçam os horizontes, se consolidam valores ou a falta
deles.
Essa perspectiva não foi inventada por uma campanha presidencial.
Os votos que a consagram estão sendo gestados ao longo dos
últimos 30 anos no Brasil, desde que a luta pela reconquista da
democracia juntou-se à defesa do meio ambiente e da qualidade de
vida nas cidades, no campo e na floresta.
Parte importante da nossa população atualizou seus desafios,
desejos e perspectivas no século 21. Mas ainda tem que empreender
um esforço enorme e muitas vezes desanimador para ser ouvida por
um sistema político arcaico, eleitoreiro, baseado em acordos de
cúpula, castrador da energia social que é tão vital para o país quanto
todas as energias de que precisamos para o nosso desenvolvimento
material.
Estou certa de que estamos no momento ao qual se aplica a frase
atribuída a Victor Hugo: “Nada é mais forte do que uma idéia cujo
tempo chegou”.
O segundo turno é uma nova chance para todos. Para candidatos e
coligações comprometerem-se com propostas e programas que
possam sair das urnas legitimados por um vigoroso pacto social entre
eleitos e eleitores. Para os cidadãos, que podem pensar mais uma
vez e tornar seu voto a expressão de uma exigência maior, de que a
manutenção de conquistas alie-se à correção de erros e ao preparo
para os novos desafios.
Mesmo sem concorrer, estamos no segundo turno com nosso
programa, que reflete as questões aqui colocadas. Esta é a nossa
contribuição para que o processo eleitoral transcenda os velhos
costumes e acene para a sustentabilidade política que almejamos.
Como disse, ousei trazer a vocês essas reflexões, mas não como
formalidade ou encenação política nesta hora tão especial na vida do
pais. Foi porque acredito que há terreno fértil para levarmos adiante
este diálogo. Sei disso pela relação que mantive com ambos ao longo
de nossa trajetória política.
De José Serra guardo a experiência de ter contado com sua
solidariedade quando, no Senado, precisei de apoio para aprovar
uma inédita linha de crédito para os extrativistas da Amazônia e para
criar subsídio para a borracha nativa. Serra dispôs-se a ele mesmo
defender em plenário a proposta porque havia o risco de ser
rejeitada, caso eu a defendesse.
Com Dilma Roussef, tenho mais de cinco anos de convivência no
governo do presidente Lula. E, para além das diferenças que
marcaram nossa convivência no governo, essas diferenças não
impediram de sua parte uma atitude respeitosa e disposição para a
parceria, como aconteceu na elaboração do novo modelo do setor
elétrico, na questão do licenciamento ambiental para petróleo e gás e
em outras ações conjuntas.
Estou me dirigindo a duas pessoas dignas, com origem no que há de
melhor na história política do país, desde a generosidade e
desprendimento da luta contra a ditadura na juventude, até a
efetividade dos governos de que participaram e participam para levar
o país a avanços importantes nas duas últimas décadas.
Por isso me atrevo, seja quem for a assumir a Presidência da
República, a chamá-los a liderar o país para além de suas razões
pessoais e projetos partidários, trocando o embate por um debate
fraterno em nome do Brasil. Sem esconder as divergências, vocês
podem transformá-las no conteúdo do diálogo, ao compartilhar idéias
e propostas, instaurando na prática uma nova cultura política.
Peço-lhes que reconheçam o dano que a política atrasada impõe ao
país e o risco que traz de retrocessos ainda maiores. Principalmente
para os avanços econômicos e sociais, que a sociedade brasileira,
com justa razão, aprendeu a valorizar e preservar.
Espero que retenham de minha participação na campanha a
importância do engajamento dos jovens, adolescentes e crianças,
que lhes ofereçam espaço de crescimento e participação. Que
acreditem na capacidade dos cidadãos e cidadãs em desejar o novo
e mostrar essa vontade por meio do seu voto. Que reconheçam na
sociedade brasileira uma sociedade adulta, o que pressupõe que
cada eleitor escolha o melhor para si e para o país e o expresse, de
forma madura, livre e responsável, sem que seu voto seja
considerado propriedade de partidos ou de políticos. Pois, como
repeti inúmeras vezes no primeiro turno, o voto não era meu, nem da
Dilma, nem do Serra. O voto é e sempre será do eleitor e de sua
inalienável liberdade democrática.
Esta é minha contribuição, ao lado das diretrizes de programa de
governo que são um retrato do amadurecimento de quase 30 anos de
construção do socioambientalistmo no Brasil. Espero que a acolham
como ela é dada, com sinceridade. A utopia, mais que sinal de
ingenuidade, é mostra de maturidade de um povo cujo olhar eleva-se
acima do chão imediato e anseia por líderes capazes de fazer o
mesmo.
Que Deus continue guiando nossos caminhos e abençoando nossa
rica e generosa nação.

Marina Silva