sábado, 27 de agosto de 2011

O Poderoso Chefão

VEJA, 27 de agosto de 2011


O ex-ministro José Dirceu mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma

Há muitas histórias em torno das atividades do ex-ministro José Dirceu. Veja revela a verdade sobre uma delas: mesmo com os direitos políticos cassados, sob ameaça de ir para a cadeia por corrupção, o chefe da quadrilha do mensalão continua o todo-poderoso comandante do PT. Dirceu é um homem de negócios, mas continua a ser o homem do partido.

O “ministro”, como ainda é tratado em tom solene pelos correligionários, mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com senadores, deputados, o presidente da maior estatal do país e até ministro de estado — reuniões que acontecem em horário de expediente, como se ali fosse uma repartição pública.

E agora com um ingrediente ainda mais complicador: ele usa o poder e toda a influência que ainda detém no PT para conspirar contra o governo Dilma — e a presidente sabe disso.

O que leva personagens importantes e respeitáveis, como os que aparecem nas imagens que ilustram esta reportagem, a deixar seu local de trabalho para se reunir em um quarto de hotel com o homem acusado de chefiar uma quadrilha responsável pelo maior esquema de corrupção da história do Brasil? Alguns deles apresentam seus motivos: amizade, articulações políticas, análise econômica, às vezes até o simples acaso. Há quem nem sequer se lembre do encontro.

Outros preferem não explicar. Depois de viver na clandestinidade durante parte do regime militar, o ex-ministro José Dirceu se tornou habitué dos holofotes com a redemocratização do país. Foi fundador e presidente do PT, elegeu-se três vezes deputado federal e comandou a estratégia que resultou na eleição de Lula para a Presidência da República. Como recompensa, foi alçado ao posto de ministro-chefe da Casa Civil.

Foi um período de ouro para ele. Dirceu comandava as articulações no Congresso, negociava indicações de ministros para tribunais superiores, decidia o preenchimento de cargos e influenciava os mais apetitosos nacos da administração federal, como estatais, bancos públicos e fundos de pensão. Dirceu se jactava da condição de “primeiro-ministro” e alimentava o próprio mito de homem poderoso.

Sua glória durou até que ele fosse abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, quando se descobriu que chefiava também um bando de vigaristas que assaltava os cofres públicos.

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Desde então, tudo em que Dirceu se envolve é sempre enevoado por suspeitas. Oficialmente, ele ganha a vida como um bem-sucedido consultor de empresas instalado em São Paulo. Mas é em Brasília, na mais absoluta clandestinidade outra vez, que ele continua a exercer o seu principal talento.

A 3 quilômetros do Palácio do Planalto, Dirceu mostra que suas garras estão afiadas. Ainda é chamado de “ministro”, mantém um concorrido gabinete num quarto de hotel, tem carro à disposição, motorista, secretário e, mais impressionante, sua agenda está sempre recheada de audiências com próceres da República — ministros, senadores e deputados.

As autoridades é que vão a José Dirceu. Essa inversão de papéis poderia se explicar por uma natural demonstração de respeito pelos tempos em que ele era governo. Não é. É uma efetiva demonstração de que o chefão ainda é poderoso.

Dirceu tenta recuperar o prestígio político que tinha no governo Lula, usando como arma muitos aliados que ainda lhe beijam o rosto. Convoca-os como soldados, quando necessário, numa tentativa de pressionar a presidente Dilma a atender a suas demandas. Ou torná-la refém por meio da pressão dos partidos.

Esse trabalho de guerrilha — e, em alguns momentos, de evidente conspiração — chegou ao paroxismo durante a crise que resultou na queda de Antonio Palocci da Casa Civil.

Naquela ocasião, início de junho, Dirceu despachou diretamente de seu bunker instalado na área vip de um hotel cinco-estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas. Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Antonio Palocci e durante as quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão.

Articulação minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais de uma conspiração de Dirceu e do seu grupo para influir nos acontecimentos que ocorriam naquela semana — acontecimentos que, descobre-se agora, contavam com a participação de figuras do próprio governo.

Em 8 de junho, numa quarta-feira, Dirceu recebeu no hotel a visita do ministro do Desenvolvimento, o petista Fernando Pimentel. Conversaram por 28 minutos. Sobre o quê? Pimentel diz não se lembrar da pauta nem de quem partiu a iniciativa do encontro. Admite, no entanto, falar com frequência com o ex-ministro sobre o contexto brasileiro.

É uma estranha aproximação, mas que encontra explicação na lógica que une e separa certos políticos de acordo com o interesse do momento. Próximo a Dilma desde quando era estudante, Pimentel defendeu, durante a campanha, a ideia de que a então candidata do PT se afastasse ao máximo de Dirceu.

Pimentel e Dirceu estavam em campos opostos. Naquela ocasião, o atual ministro do Desenvolvimento nutria o sonho de se tornar o futuro chefe da Casa Civil.

Perdeu a chance depois de Veja revelar que funcionários contratados por ele para trabalhar na campanha montaram um grupo de inteligência cujas tarefas envolviam, entre outras coisas, espionar e fabricar dossiês contra
os adversários, principalmente o concorrente do PSDB à Presidência, José Serra.

No novo governo, Pimentel foi preterido na Casa Civil em favor de Palocci. O mesmo Palocci que, no primeiro mandato de Lula, disputava com Dirceu o status de homem forte do governo e de candidato natural à Presidência da República.

Um cacique petista tenta explicar a união recente de Pimentel com José Dirceu: “No PT, é comum adversários num determinado instante se aliarem mais à frente para atingir um objetivo comum. Isso ocorre quando há uma conjução de interesses.”

Será que Pimentel queria se vingar de Palocci, a quem considerava um rival dentro do governo?

Dois dias antes, na segunda-feira, Dirceu esteve com José Sergio Gabrielli, presidente da Petrobras. Gabrielli enfrenta um processo de fritura desde o fim do governo Lula. A presidente Dilma não cultiva nenhuma simpatia por ele. Palocci pretendia tirar Gabrielli do comando da estatal.

Gabrielli precisava — e precisa — do apoio, sobretudo do PT, para se manter no cargo. Dirceu é consultor de empresas do setor de petróleo e gás. Precisa manter-se bem informado no ramo para fazer dinheiro. É o famoso encontro da fome com a vontade de comer — ou conjunção de interesses.

O presidente da Petrobras, que trabalha no Rio de Janeiro, chegou à suíte ocupada pelo ex-ministro da Casa Civil, no 16º andar do hotel, ciceroneado por um ajudante de ordens. Permaneceu lá exatos trinta minutos. Ao sair, o presidente da Petrobras, que chegou ao quarto de mãos vazias, carregava alguns papeis consigo.

Perguntado sobre a visita, Gabrielli limitou-se a desconversar: “Sou amigo dele há muito tempo, e não tenho que comentar isso com ninguém”.

Naquela noite de segunda-feira, a demissão de Palocci já estava definida. O ministro não havia conseguido explicar a incrível fortuna que acumulou em alguns meses prestando serviços de consultoria — a mesma atividade de Dirceu.

Na terça-feira, horas antes da demissão de Palocci, Dirceu recebeu para uma conversa de 54 minutos três senadores do PT: Delcídio Amaral, Walter Pinheiro e Lindbergh Farias. Esse último conta que foi ele quem pediu a
audiência.

Qual assunto? Falaram do furacão que assomava à porta da Casa Civil. “O ministro Dirceu nunca falou um ‘ai’ contra o Palocci. Pelo contrário, sempre tentou resolver a crise com a ajuda da nossa bancada”, garante Farias.

De fato, a bancada foi decisiva — mas para sepultar de vez a tentativa de Palocci de salvar a própria pele. Logo após o encontro com Dirceu, os três senadores foram a uma reunião da bancada do PT e recusaram-se a assinar uma nota em defesa do então ministro-chefe da Casa Civil. Alegaram que a proposta não havia sido combinada com o Planalto.

Existiam outros motivos para a falta de entusiasmo: o trio também estava insatisfeito com Palocci. Delcídio reclamava do fato de não conseguir emplacar aliados em representações de órgãos federais em Mato Grosso do
Sul, seu estado natal e berço político. “Num momento tenso como aquele, fui conversar com alguém que está sempre bem informado sobre os acontecimentos”, explicou Delcídio sobre o encontro com o poderoso chefão.

Pinheiro estava contrariado com a demissão de um petista do comando da Polícia Rodoviária Federal na Bahia. “O encontro foi para fornecer material para que ele publicasse um artigo sobre o projeto de lei que trata da produção audiovisual no país”, disse ele.

Lindbergh Farias, por seu turno, ainda digeria as tentativas fracassadas de ser recebido por Palocci. No fim da tarde de terça-feira, o ministro-chefe da Casa Civil entregou sua carta de demissão. E teve início a disputa pela sua sucessão.

Quando Gleisi Hoffmann já havia sido anunciada como substituta de Palocci, no mesmo dia 7 de junho, Dirceu recebeu o deputado petista Devanir Ribeiro. Foram 25 minutos de conversa. Já era sabido que, no rastro da saída de Palocci, Luiz Sérgio, um aliado de Dirceu, deixaria o ministério das Relações Institucionais.

Estava deflagrada a campanha para sucedê-lo — e Dirceu queria emplacar no cargo o deputado Cândido Vaccarezza, líder do governo na Câmara.

Procurado por Veja, Devanir, que é compadre do presidente Lula, negou que tivesse ido ao hotel conversar com Dirceu. Um lapso de memória, como deixa claro a imagem nesta reportagem. “Faz muito tempo que eu não o vejo.”

Na quarta-feira, 8 de junho, pela manhã, as articulações de Dirceu continuaram a pleno vapor. Ele recebeu o próprio Vacarezza. Durante 25 minutos, trataram, segundo o líder, do congresso do PT que será realizado em setembro.

“Converso com o Dirceu com regularidade. Como o caso do Palocci era palpitante, é possível que tenha sido abordado, mas não foi o tema central”, afirma o deputado — que, no início do governo Dilma, chegou a dar entrevistas como o futuro presidente da Câmara, mas acabou convencido a desistir de disputar o cargo por ter perdido apoio dentro do PT.

A agenda do chefão não se limita aos companheiros de partido. Duas horas depois do encontro com Vacarezza, foi a vez de o senador peemedebista Eduardo Braga adentrar o hotel.

Segundo o parlamentar, ele e Dirceu se encontraram por obra do acaso, no lobby, uma coincidência. O senador conta que aproveitou a coincidência para auscultar os ânimos do PT sobre o projeto do novo Código Florestal: “Queria saber como o PT se posicionaria. Ninguém pode negar que a máquina partidária petista foi arquitetada e construída pelo Dirceu. Ele respira o partido”.

O PMDB também respira poder. Com o apoio de Dirceu, peemedebistas e petistas fecharam um acordo para pressionar o Planalto a indicar Vacarezza ao cargo de ministro de Relações Institucionais no lugar de Luiz Sérgio. A substituição nessa pasta foi realizada três dias depois da queda de Palocci.

Informada do plano de Dirceu, a presidente Dilma desmontou-o ao nomear para o cargo a ex-senadora Ideli Salvatti. A presidente já havia sido advertida por assessores do perigo de delegar poderes a companheiros que orbitam em torno de Dirceu.

Mas Dilma também conhece bem os caminhos da guerrilha política. Chamada de “minha camarada de armas” por ele quando lhe foi passado o comando da Casa Civil, em 2005, a presidente não perde de vista os passos do chefão. Como? Pedindo a algumas autoridades que visitam Dirceu em Brasília informações sobre suas ambições.

“A Dilma e o PT, principalmente o PT afinado com o Dirceu, vivem uma relação de amor e ódio. Mas hoje você não pode imaginar um rompimento entre eles”, diz um interlocutor de confiança da presidente e do ex-ministro.

E amanhã? Se Dilma se consolidar como uma presidente popular e, mais perigoso, um entrave a um novo mandato de Lula, o tal rompimento entra no campo das possibilidades. “Nunca a turma do PT foi tão lulista como hoje. Imagine em 2014”, afirma um cardeal do partido. Ele é mais um, como Dirceu, insatisfeito com o fato de a legenda não ter conseguido, como previra o ex-ministro, impor-se à presidente da República.

Dilma está resistindo bem. Uma faxina menos visível é a que ela está fazendo nos bancos públicos. Aos poucos, vem substituindo camaradas ligados a Dirceu por gente de sua confiança. E o chefão não está nada contente com isso. Tanto que tem alimentado o noticiário com denúncias contra pessoas muito próximas à presidente, naquele tipo de patriotismo interessado que lhe é peculiar.

Procurado por Veja, Dirceu não respondeu às perguntas que lhe foram feitas. A suíte reservada permanentemente ao “ministro” custa 500 reais a diária. Para chegar de elevador, é preciso um cartão de acesso especial. Cada quarto do andar recebe uma única cópia.

Qualquer visita ao “ministro”, portanto, tem de ser conduzida ao andar. Esse trabalho de cicerone é feito por Alexandre Simas de Oliveira, um cabo da Aeronáutica, que foi assessor de Dirceu na Câmara dos Deputados até ele ter o mandato cassado.

Hoje, o cicerone é empregado do escritório de advocacia Tessele & Madalena, que tem como um dos donos outro ex-assessor de Dirceu, o advogado Hélio Madalena. O advogado já foi flagrado uma vez de caso com a máfia — a russa. Escutas feitas pela Polícia Federal mostraram que, na condição de assessor da Casa Civil, ele fazia lobby para conceder asilo político no Brasil ao magnata russo Boris Berezovski (mafioso acusado de corrupção e assassinato).

E Madalena foi flagrado outra vez na semana passada. É o seu escritório que paga a fatura do “gabinete” de José Dirceu. Na última quinta-feira, depois de ser indagado sobre o caso, Madalena instou a segurança do hotel Naoum a procurar uma delegacia de polícia para acusar o repórter de Veja de ter tentado invadir o apartamento que seu escritório aluga e, gentilmente, cede como “ocupação residencial” a José Dirceu.

O jornalista esteve mesmo no hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades. Tentando descobrir por que o nome dele não consta da relação de hóspedes. Tentando descobrir por que uma empresa de advocacia paga a fatura de sua misteriosa “residência” em Brasília.

Enfim, tentando mostrar a verdade sobre as atividades de um personagem que age sempre na sombra. E conseguiu. Mas a máfia não perdoa.