quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Baioneta não é voto e cachorro não é urna: um discurso de Ulysses Guimarães que fez história

JOSÉ PIRES, 30 de dezembro de 2009


Em maio de 1978, o deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, partido da oposição que concentrava correntes políticas e ideológicas que combatiam a ditadura militar (os políticos aliados do regime estavam na Aliança renovadora Nacional, a Arena), realizava uma caravana por estados do Nordeste para estimular a votação popular nas eleições de 15 de novembro. As eleições eram para deputado federal e senador. Nesta época, além desses cargos eram eleitos pelo voto direto apenas deputados estaduais, vereadores e prefeitos, exceto os das capitais, que eram nomeados.

Assim como ocorria em vários estados, o presidente do MDB tinha sua presença hostilizada na Bahia, cujo governo era dominado pelo grupo de Antonio Carlos Magalhães (1927-20070 desde o golpe militar. Havia tropas-de-choque da polícia militar nas ruas e as provocações eram constantes.

Sob a liderança de Ulysses, a oposição vinha avançando gradativamente no mapa político do país, ocupando importantes espaços políticos a cada eleição. Ele havia recebido em 1971 o comando de um MDB com pouco peso político e eleitoral e, de forma persistente, fizera o partido conquistar prestígio e abalar a confiança e o poder do regime, de tal modo que no ano anterior a seu discurso, por meio de medidas autoritárias a ditadura havia determinado a nomeação de um senador em cada Estado. Estes senadores nomeados pelo governo passaram a ser conhecido como "senadores biônicos".

Em 1974, a oposição conquistou uma grande vitória eleitoral. Era a primeira desde 1964. Para o Senado o MDB obteve 14,5 milhões de votos contra 10 milhões da Arena. Neste ano se renovava um terço do Senado. Se fossem dois terços, a vitória teria dado ao MDB o controle da Casa.

Como poucos acreditavam nesta vitória, em alguns estados acabaram sendo eleitos políticos desconhecidos, porque emedebistas importantes não aceitaram as candidaturas. Foi o caso do Paraná, onde se elegeu o londrinense Leite Chaves. Em São Paulo, elegia-se o novato Orestes Quércia, até então um pouco conhecido prefeito de Campinas.

Em 1978 o MDB voltaria a derrotar o governo nas eleições para o Senado: 17,4 milhões contra 13,1 milhões.

O crescimento gradativo da oposição levava a retaliações variadas do regime militar e seus agregados. As reuniões do partido eram alvo de provocações e arbitrariedades em várias capitais. O clima de intimidação era, na maioria das vezes, criado pelos próprios governos estaduais, cujos governadores eram nomeados. As eleições diretas para governador viriam somente em 1982. Foi nesta situação de arbitrariedades que aconteceu o episódio da Bahia.

Com o crescimento do MDB, também adquiria cada vez mais prestígio um grupo de políticos que vinham sendo eleitos para a Câmara Federal desde 1970 e que se destacavam dentro do partido pelo perfil mais combativo. Era o grupo dos “autênticos”, assim chamados porque faziam oposição ao regime de maneira mais firme.

O avanço do MDB sob o comando de Ulysses Guimarães foi sem dúvida elemento político decisivo para a derrocada da ditadura militar. A chamada “oposição consentida” do partido acabou sendo usada de forma hábil para abrir canais expressivos de participação política dentro da sociedade civil.

A própria anticandidatura de Ulysses Guimarães à presidência da República contra Ernesto Geisel (1907-1996) em 1974 hoje pode ser vista como uma tática astuciosa da oposição para pregar pelo país afora de forma legal o fim da ditadura militar e a volta da democracia. Não esqueçamos que tínhamos então um país aterrorizado pela violência do governo Médici, que estava acabando. Ao mesmo tempo, o regime militar gozava de muita popularidade.

As ações de Ulysses e dirigentes emedebistas pelo país afora, como o exemplo da Bahia, onde ele fez o famoso discurso, foram fundamentais na construção do caminho que levou à abertura democrática e, posteriormente, as eleições diretas que encerrariam de vez o ciclo militar.

O discurso da Bahia é um dos símbolos maiores desta luta pela democracia. No dia 13 de maio de 1978 Ulysses e várias lideranças nacionais do MDB estavam no estado, onde aconteceu o incidente que fez o líder emedebista proferir a famosa frase. A data da libertação dos escravos evidentemente é apenas uma coincidência, encaixada depois no discurso de forma inteligente pelo emedebista.

Ulysses Guimarães e sua comitiva se dirigiam à sede local do MDB, quando policiais com cães tentaram impedir o acesso deles ao prédio do partido. Acompanhado de parlamentares e populares o dirigente do PMDB avançou em direção aos policiais armados. Empurrando um cano do fuzil de um soldado que barrava seu caminho, disse: “Respeitem o presidente da Oposição”.

Os soldados afastaram-se e a comitiva entrou na sede do partido, onde, de improviso, Ulysses Guimarães fez o discurso de onde saiu esta que é uma das frases mais famosas da República: “Baioneta não é voto e cachorro não é urna”.



O discurso de Ulysses Guimarães

Meus amigos que aqui estão,

Brasileiros que aqui não puderam vir e estão lá fora, mas que, apesar disso, em todo o Brasil, ouvem o pregão do MDB pela liberdade e pela democracia,

Soldados da minha pátria que foram aqui convocados — sei que contra a consciência de vocês, que são do povo — para impedir que o povo aqui chegassem. Mas vocês nos ouvem como assistência e são juízes de que quem defende vocês somos nós, porque a verdadeira autoridade não vem dos homens, vem da lei, que é igual para todos e não pode discriminar entre os brasileiros.

Meus prezados amigos,

Enquanto ouvíamos as vozes livres que aqui se pronunciaram, ouvíamos também o ladrar dos cães policiais lá fora. O que se falou aqui é a linguagem da História, da tradição, do passado, dos Tiradentes, dos cassados, em cuja frente está o exemplo extraordinário do líder sacrificado Alencar Furtado.

O ladrar, essa manifestação zoológica, é do arbítrio, da prepotência, que haveremos de vencer, não nós do MDB, mas o povo brasileiro.

Meus amigos, foi uma violência, foi, mas uma violência estúpida, inútil e imbecil. Eles nos ajudam e em muito. Se nós fizéssemos aqui um comício, seria um grande comício, não há dúvida, mas com uma repercussão talvez regional. Amanhã, ao amanhecer, os brasileiros vão ler os jornais, vão ver as metralhadoras e os cães, impedindo que brasileiros pacíficos exercitem um direito que está na Carta Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.

Nós não temos armas. Sou Presidente Nacional do MDB e já percorri este país oito vezes, de cidade em cidade, cercado pelas multidões. Não porto arma nenhuma (batendo no bolso e abrindo o paletó). Não tenho, meus amigos, protetores e guardas (gritos: "tem o povo", "tem a povo!"). Eu não me assusto mais, meus amigos. Tive em Pernambuco os cachorros e os cavalos do governador Moura Cavalcanti: luz apagada, pedras na praça quando realizávamos as nossas concentrações. Mas, meus amigos, o MDB, é como a clara: quanto mais bate, mais cresce. Os cães ladram mas a caravana passa.

Nós temos o povo que, sem dúvida alguma, nos levará à espetacular vitória de 15 de novembro próximo. Eu não levo, meus amigos, imagem melancólica da Bahia. A Bahia são vocês que estão aqui dentro. Aquilo que está lá fora para nos oprimir representa esta situação de arbítrio e de prepotência. Isso que está lá não é a Bahia, não é o Brasil, não é povo, não é a nação, não é sociedade, não é o cidadão.

Quero dizer a vocês: 13 de maio de 1888, então o Brasil evitou a divisão de dois Brasis - o Brasil branco que oprimia e o Brasil negro que era oprimido. Mas, quase 90 anos depois, nós temos as mesmas servidões e as mesmas discriminações. Não temos política neste país porque para haver política é preciso o povo e isso que aí está não tem a substância, o respaldo e o apoio do povo.

Temos um Presidente sem povo, temos governadores sem povo e contra o povo. E, por cúmulo de audácia, numa insólita demonstração de ousadia, que é um insulto a esta nação, criou-se esta figura que foi tatuada para a História com este nome odioso de senador "biônico". E nós estamos aqui para dizer que não será aceito isso!

Na cadeira de Rui Barbosa, que representou as tradições libertárias deste estado, não podem sentar os penetras indicados pela oligarquia e pelos conchavos entre amigos e parentes.

Vocês ouvem falar do achatamento salarial. Vocês já ouviram falar e de se tomar providência do achatamento dos lucros criminosos que fazem a opulência de poucos e enchem as burras e as arcas das multinacionais, fazendo com que tenhamos uma sangria às avessas, o sangue e o suor dos trabalhadores para enriquecer outras pátrias, outros países?

Muitas vezes se pergunta: o que o MDB pode fazer pelo povo? Eu quero sintetizar essa resposta. O MDB não é munificente, o MDB não é patriarcal, o MDB não quer presentear com alguma dádiva _ porque se desse, poderia também tirar. O MDB quer dar uma arma. O povo brasileiro está desarmado da grande arma pela qual ele defende o seu pão, o seu teto, a saúde e a sobrevivência da sua família. O MDB quer dar a urna e o voto a todos os brasileiros. Não há salário justo e digno. É impossível salário digno e justo sem liberdade, porque já dizia a Bíblia que "ganharás o teu pão com o suor de teu rosto". Para ganhar o pão não é preciso só o trabalho físico e intelectual, é também reivindicar, é exigir da sociedade as vantagens econômicas para todos e não em benefício de poucos. Não há, portanto, salários justos e não existe divisão, distribuição de riquezas, sem a democracia e sem a liberdade.

Meus amigos, a discriminação, este anátema que envergonha a cultura e a educação brasileira: o 477, um dos filhos diletos do nefando AI-5. Nós do PMDB sabemos que escola e faculdade são para dar o diploma, mas somente o caráter é que faz o homem. E o jovem, sem liberdade e democracia, não será homem para servir a si, aos seus e à sociedade.

A inexistência do habeas corpus é testemunha de que há injustiça, ilegalidade, arbítrio, nesta nação.

Aqui, queremos lembrar os nossos mártires, os que caíram, com a canção da resistência francesa: companheiro, se você tombar, alguém sairá da sombra para tomar o seu lugar.

Mesmo que tenhamos divergências naturais, é preciso que nos unamos numa trincheira comum. Há um inimigo comum, um adversário comum. São aqueles que se apropriaram do poder e só através de nossa união é que poderemos reconciliar esta nação.

A data de 13 de maio é a data limpa, asseada, decente e branca da liberdade neste pais. Quiseram mas não conseguiram aqui na Bahia, que a data da liberdade fosse manchada e enodoada com o espetáculo de opressão que aqui se montou para espanto de todo o Brasil. Mas, meus amigos, aguardamos e lutamos por outra Lei Áurea, por outro 13 de maio: pela libertação. Esta libertação será no dia que está próximo e que tem este nome: Assembléia Nacional Constituinte.

E a Assembléia Nacional Constituinte só pode ser feita na base da honra, da dignidade, do dever de reparação àqueles que tombaram no sangue e no sacrifício. A base para isso é esse nome de paz e de esperança para o Brasil e seus filhos: Anistia.

Baianos, marchemos para a vitória a 15 de novembro. Baioneta não é voto e cachorro não é urna.

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