segunda-feira, 11 de abril de 2011

Mães que perderam os filhos para a violência urbana

O DIÁRIO DE MARINGÁ, 10 de abril de 2011

Três mulheres e um destino em comum: elas são órfãs de filhos. Fabíula, Márcia e Tiago foram brutalmente assassinados e a partir daí Márcia Regina, Nelir e Sandra viram suas vidas se transformarem


Fabíula foi atropelada durante um racha na Avenida Colombo há quase 8 anos. Márcia foi morta em um dos crimes mais cruéis de Maringá. Tiago foi assassinado com três tiros na cabeça. Na escala de dor da psicologia, o sofrimento de perder um filho é maior do que a amputação de um braço ou uma perna. Para a psicóloga Ghyslene Rodrigues, é o trauma mais difícil de superar. "Um filho morrer antes dos pais vai contra a natureza humana", comenta. "A mãe morre sem esquecer do filho."

Superar é verbo inexistente no vocabulário de Márcia Regina Coalio que, em 2003, perdeu Fabíula. "Eu não superei a morte da minha filha, mas aprendi a me acostumar com a ausência dela."

Em 2007, dois assaltantes interromperam a vida de Tiago, 21, filho de Sandra Franchini. O jovem morreu na madrugada de 8 de junho, mas horas antes estava em casa, com a mãe. Tomou banho, trocou de roupa e saiu para encontrar os amigos.

Às 23h30, mãe e filho conversaram por telefone. Cerca de 4 horas depois, ele estava morto. "É um sofrimento como o de Maria, mãe de Jesus", compara.

"Mas não se trata de um privilégio." Nelir Constantino, dona de casa, mãe de Márcia Andréia, 10, morta em 2007, ilustra o sentimento pela morte da filha como estar à deriva no mar revolto. "Como se as ondas viessem a todo o mundo e eu só colocasse o nariz para fora, respirasse um pouco e afundasse de novo."



Mortes
44 pessoas foram assassinadas em Maringá em 2009
39 homicídios foram registrados na cidade em 2010
14 assassinatos ocorreram neste ano, até a última sexta-feira



‘Misto de perda e revolta’
Futuro médico, Tiago Franchini, 21 anos, foi assassinado no dia 8 de junho de 2007, em Maringá. Estudante do 4º ano de Medicina em Blumenau (SC), estava em Maringá para visitar a mãe, Sandra Franchini, no feriado de Corpus Christi. Naquela sexta-feira à noite, saiu com os amigos e foi brutalmente assassinado por dois bandidos.

A mãe, Sandra, na época secretária de Assistência Social, foi avisada da morte do filho pela irmã. "Um filho assassinado é uma amputação; é um misto de perda e revolta", conta. "Digo isso porque tenho certeza que esse não era o plano de Deus para o Tiago."

O jovem foi abordado por ladrões na saída de uma boate da Avenida Cerro Azul. Tiago chegou sozinho em um Golf preto, às 2 horas. Os assaltantes teriam esperado que ele saísse, o que aconteceu 1 hora depois. Ele foi rendido pelos bandidos e obrigado a dirigir até a PR-317, onde foi executado com três tiros na cabeça. Os dois ladrões disseram que pretendiam vender o carro por R$ 600 reais e gastar o dinheiro com drogas.

A morte do filho deixou Sandra sem chão e ela decidiu mudar de apartamento 1 mês depois. Ficou 2 anos na nova casa, quando decidiu retornar para a residência antiga. "Eu me mudei para tentar esquecer, mas acho que fui covarde em não querer ficar ali", relata. "Era muito triste, a casa tinha o cheiro dele e tinha medo de continuar naquela tristeza."

Roupas e pertences do filho também foram doados logo em seguida. Sandra guarda apenas objetos pequenos, como fotografias e fitas de vídeo. As lembranças estão armazenadas em uma caixa que somente ela tem acesso. "É muito difícil se desfazer de tudo, mas são coisas materiais. O bem mais precioso já se foi. Guardar todas aquelas coisas só iria me fazer sofrer."

Sandra decidiu doar os pertences de Tiago depois de ter de conviver com fotos do irmão já falecido espalhadas pela casa da mãe. "Aquilo me incomodava muito e não quis fazer o mesmo com meus filhos."

Chorar a portas trancadas não era o exemplo que Sandra queria dar aos filhos Carolina, 19, e Guilherme, 21. "Não queria que eles passassem por esse constrangimento, mas só Deus sabe a força que eu fiz para seguir em frente. A mãe é a que mais ama o filho e é a que mais tem de ter força porque ela precisa cuidar dos outros."

Comportamento
"O bem mais precioso já se foi.
Guardar todas aquelas coisas
só iria me fazer sofrer."

Passados 4 anos da morte de Tiago, ela diz que hoje consegui sorrir de verdade porque tem a convicção de que o filho está bem. Um sonho mostrou isso a ela. "Ele estava de branco e iluminado, dizendo: Mãe, chega, acabou. Não chore mais porque eu estou bem."

As lembranças de Tiago são a de um menino responsável que adorava comprar camisas. O jovem viveu com a mãe até os 17 anos, quando se mudou para Curitiba para fazer cursinho pré-vestibular e em seguida foi morar em Blumenau, com um amigo da faculdade.

"A gente gostava de passear de mãos dadas e sempre estávamos juntos nos campeonatos de equitação." Tiago era um hipista dedicado. "Mas nada faz mais falta do que um abraço."


‘Queria que eles morressem’
Fabíula, 12 anos, caçula de três irmãos, gostava de reunir a família, domingo de manhã, para tomar café. Ela abria a geladeira e colocava na mesa tudo o que encontrava nas prateleiras: margarina, leite, frutas, queijo e presunto. Era o único dia da semana em que pai, mãe e irmãos faziam a primeira refeição do dia juntos.

Depois da morte de Fabíula, em agosto de 2003, os cafés da manhã foram interrompidos. A mãe, Márcia Regina Coalio, passou a reservar as manhãs de domingo para ir ao túmulo da filha, rotina que seguiu por alguns meses até que um telefonema do filho mais velho, Fabrício, 26, mudou tudo.

"Ele me ligou quando eu estava no cemitério e disse: Pois é, mãe, nós três estamos em casa e não tem pão para a gente tomar café. A Fabíula já se foi, mas nós estamos aqui e acho que não era isso que ela queria."

O recado fez Márcia mudar de atitude perante a morte da filha. "Eu não podia abandoná-los porque eles precisavam de mim", relata. "Foi a partir daí que eu continuei a viver e a trabalhar."

A última conversa entre mãe e filha foi por telefone, minutos antes do acidente que mataria a adolescente. Fabíula disse à mãe que iria à locadora, mas antes passaria na lanchonete para pegar dinheiro.

Márcia estava no bar, atendendo clientes, quando viu Fabíula e uma funcionária atravessando a avenida. Segundos depois, ouviu comentários de um acidente. "Senti uma dor no peito e lembrei que tinha visto a minha filha atravessando a avenida." Márcia saiu do bar e encontrou a filha caída no asfalto. "Eu a peguei do chão e abracei, mas já estava morta."

Fabíula foi atropelada por Marcos Jesus da Silva, quando aguardava no meio-fio para atravessar a Avenida Colombo. Silva e Luiz Cavicchioli Forini apostavam uma corrida na noite do dia 13 de agosto de 2003 com os faróis apagados.

Revolta
"Como um ser humano consegue viver
sabendo que matou uma pessoa?"

O impacto arremessou a menina a 66 metros de distância. Apesar da gravidade do acidente, Silva fugiu do local, escondeu o veículo e só se apresentou à polícia 5 dias depois.

Os dois motoristas foram a júri popular 6 anos após o crime. Foram condenados por homicídio doloso, ingressaram com recurso para baixar a pena, mas perderam em todas as instâncias. Até hoje, nenhum dos dois cumpriu um dia sequer da pena. "Eu queria que eles morressem", desabafa Márcia. "Como um ser humano consegue viver sabendo que matou uma pessoa?"

A vida da família passou a ser dividida entre "antes" e "depois" da morte de Fabíula. Muita coisa mudou na casa dos Coalio, a começar pela residência.

Pai, mãe e os filhos deixaram o apartamento na Avenida Colombo, em frente ao bar de Márcia e próximo ao local do acidente, para uma casa no Conjunto Ney Braga. Milton, o pai, não quis mais trabalhar. Teve dois acidentes vasculares cerebrais, deixou o emprego de vendedor no qual ganhava R$ 5 mil por mês para se aposentar com um salário mínimo.

Felipe, o filho mais novo e o maior companheiro de Fabíula, entrou em depressão. Só depois de 4 anos o rapaz se recuperou. Márcia fechou o bar por alguns meses, mas repensou a decisão e se entregou ao trabalho. "A minha família nunca mais foi a mesma."

Roupas e objetos pessoais de Fabíula só foram doados há 1 ano e meio. Mas a mãe ainda preserva os cadernos da escola e da catequese e as peças de roupa preferidas da filha – uma jardineira e o pijama –, que estão no guarda-roupa de Márcia. As fotos da menina ainda estão pela casa e na parede do bar. "Todas as manhãs eu chego no trabalho, olho para a foto e dou bom dia a ela."


Conforto na religião
Nelir Constantino acreditava que a filha Márcia, 10 anos, seria uma ótima professora. Nas brincadeiras, era sempre ela que ensinava as amigas.

Adorava participar do coral da igreja e na cozinha devorava pão com ovo frito "com a gema firme" de manhã. Era prestativa e ajudava a mãe a organizar a casa. "É claro que quando estava muito afim de brincar ela lavava a louça resmungando", conta Nelir.

Passados quase 4 anos da morte da filha, a mãe voltou a cantar e sorrir. "Eu sobrevivi", diz ela. "É uma prova de Deus, que evitou que eu entrasse em uma condição que não pudesse cuidar de filhos, marido e da minha vida."

O nome de Márcia é sempre falado em casa, mas as lembranças são apenas de horas alegres em família. "Não lembramos dela em momentos difíceis e sim das risadas e das brincadeiras; é como se ela não tivesse partido", comenta Nelir.

Nos meses seguintes à morte, o assunto era tabu dentro de casa, mas o tempo deu liberdade para que pai, mãe e filhos voltassem a falar da menina. Mércia, 10, lembra da irmã nas refeições e quando ganha uma roupa bonita. "Queria tanto que a Márcia visse este vestido, aposto que ela iria amar", relata a mãe.

Márcia foi morta em 20 de outubro de 2007 pelo manobrista e animador de lojas Natanael Búfalo. Ele raptou a menina na Igreja Assembleia de Deus, local onde centenas de pessoas participavam de um encontro religioso, e a levou para casa.

Lá, a submeteu todo tipo de tortura. Em seguida, esganou-a até a morte, levou o corpo para um local ermo e ateou fogo. Búfalo está preso na Penitenciária Estadual de Maringá (PEM) desde novembro de 2007.

Recordações
"Não lembramos dela em momentos
difíceis e sim das risadas e das
brincadeiras; é como se ela não
tivesse partido."

Nelir questiona o que poderia ter sido feito para evitar a morte de Márcia.
Talvez a família não teria ido à igreja naquela noite ou deixado a filha brincar com as amigas no pátio do templo. "Mas cheguei à conclusão que era inevitável e que a falha não foi minha. Eu não queria que tivesse acontecido comigo, mas não aceito pensar que poderia ter sido com outra mãe porque jamais gostaria de ver uma amiga sofrendo."

Roupas e sapatos de Márcia foram doados. Em casa, há apenas fotos da menina com coroa de princesa em porta-retratos na estante da sala. "Eu gosto de deixar as fotos visíveis. Se eu as tirar daqui é como se eu estivesse tirando a minha filha do meu convívio."

A família mudou da casa onde vivia em Sarandi, apoiada pela igreja. Pai, mãe e os filhos passaram 1 mês em uma chácara e há 3 anos moram em um apartamento na Zona 6. "Agora eu vejo que foi bom não ter morado mais lá (na casa antiga)", conta. "Como houve a mudança, a sensação que sinto é como se ela (Márcia) tivesse viajado."

As palavras ainda faltam a Nelir para definir o sentimento pela morte da filha. Ela conversou alguns minutos com O Diário na quinta-feira, mas preferiu escrever uma carta, cheia de referências a passagens da Bíblia.

"Como encontrar força na angústia? Em duas letrinhas: fé. Esta é a resposta a todos quando desejam saber como estou enfrentando essa situação, com a fé que gera esperança, que gera paciência e amor", escreveu.

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